Glauco Silva de Carvalho
Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo
O mundo vive tempos difíceis, quase indecifráveis. Passamos por questionamentos ontológicos que, não raras vezes, tornam conceitos seculares nebulosos e opacos.
Isso se aplica muito à forma como “direita” e “esquerda” passaram a ver, criticar, defender, apropriar, digerir, cancelar e desprezar fatos, ideias, conceitos e aspectos da vida cotidiana e política tanto do Brasil quanto do mundo. Não por outra razão, como já disse anteriormente, uso sempre a expressão “segmentos” da esquerda ou da direita ao me manifestar, pois, atualmente, não há congruência absoluta em quase nada.
Um exemplo muito atual é a postura de pessoas, grupos ideológicos e partidos políticos quanto à guerra na Ucrânia. O mundo contemporâneo está divertido. Jamais poderia imaginar ver militares, federais ou estaduais, defenderem a Rússia. Curioso ver parte do bolsonarismo defender as atitudes de Putin. Assim como é estranho constatar uma certa divergência no seio da esquerda entre a defesa da Rússia se contrapondo ao imperativo de não iniciar guerras, com todos os dramas e catástrofes que elas geram. Mas, como não é este o mote principal deste artigo, não é tão difícil decifrar o que está em jogo. De um lado, a simpatia por personalidades autoritárias e a tendência em apoiar tudo aquilo que Bolsonaro indicar que é válido ou que vale a pena. De outro, velhos laços com o grande país “comunista” que o mundo já teve, mas que se transformou numa ditadura e num país de oligarcas corruptos e arbitrários.
Pois bem, há duas medidas, tomadas pelo Comando da Polícia Militar, que entendo serem alvissareiras e avançadas para o Brasil de hoje, com tantos atrasos e retrocessos. Trata-se do uso de câmeras corporais individuais (“bodycam”) e o controle de manifestação de policiais militares por meio de redes sociais. Hoje vamos falar sobre as bodycam.
O emprego gradativo e progressivo de câmeras individuais tem levado, também de forma gradativa, porém constante, à redução da letalidade praticada por policiais. Essa medida, por si só, evidencia, de maneira cabal, como organizações militares ainda têm a capacidade institucional de adotar posturas que contrariem seus segmentos internos e agrupamentos políticos que, na atual conjuntura, estão em pleno exercício do poder. Daí não podermos, nunca, nutrir posturas preconceituosas com quem quer que seja.
O senso e o discurso comum, regado por versões dos segmentos mais arcaicos, autoritários, iliberais, ditatoriais e primitivos é o de que o uso das bodycams está cerceando o trabalho policial, contribuindo para o aumento da violência e incrementando a sensação de insegurança. Os números demonstram o contrário.
Tabela 1 – MORTE E LESÃO CORPORAL DECORRENTE DE
INTERVENÇÃO POLICIAL (JUN – OUT 21) |
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Lesão corpora por intervenção policial | Morte por
intervenção policial |
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Batalhões com bodycam | -31,6% | -87,0% | |
Batalhões sem bodycam | +32,7% | -8,5% | |
Fonte: Centro de inteligência (CI) da PMESP |
Pela tabela 1, verificamos que a redução de lesões corporais decorrentes de intervenção policial foi de quase um terço (-31,6%) e as mortes decorrentes de confrontos de quase 90% (mais precisamente, -87%).
Nos cinco meses analisados, junho a outubro de 2021, as quedas foram as mais significativas e acentuadas de que se têm notícia nos últimos 50 anos. Exatamente isto: em meio século, provavelmente esta seja a redução mais robusta de mortes e lesões corporais praticadas por policiais militares em serviço. Nem as medidas adotadas no primeiro mandato (1995-1998) do governador Mário Covas implicaram quedas tão grandes como estas. Isso evidencia, ademais, como a tecnologia pode trabalhar a favor da cidadania e da civilização e contra a barbárie. Nem tudo está perdido.
Nos batalhões que ainda (friso o “ainda”, pois esse é um processo progressivo de adoção do equipamento) não adotaram o bodycam, houve aumento de quase um terço de lesão corporal (+32,7%), ou seja, o fenômeno oposto do que ocorreu nos batalhões com bodycam, e a redução das mortes decorrentes de intervenção policial correspondem a aproximadamente 10% da queda dos batalhões que estavam usando o equipamento (-8,5%, em comparação aos 87% de queda dos batalhões com bodycam).
TABELA 2 – ATUAÇÃO DA POLÍCIA MITILAR:
FLAGRANTES E ARMAS DE FOGO APRENDIDAS (JUN – OUT 21) |
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Flagrantes | Armas de fogo aprendidas | ||
Batalhões com bodycam | +41,4% | +12,9% | |
Batalhões sem bodycam | +27,7% | +11,9% | |
Fonte: Centro de inteligência (CI) da PMESP |
Pode-se argumentar: as mortes e as lesões corporais nas unidades da Polícia Militar que usavam bodycam diminuíram, mas a produção da Polícia Militar também diminuiu. Novamente, não é o que os indicadores operacionais demonstram. Houve aumento de 41,4% de flagrantes (ou seja, as prisões decorrentes de crimes que estavam sendo praticados no ato da detenção pelo policial) e de 12,9% de armas de fogo aprendidas por policiais militares. Em contrapartida, nos batalhões que não estavam usando o equipamento de câmeras portáteis, também houve acréscimo, mas com menor intensidade: 27,7% e 11,9%, respectivamente.
TABELA 3 – CONSULTAS DE POLICIAIS AOS SISTEMAS INFORMATIZADOS –
PESSOAS E VEÍCULOS (JUN – OUT 21) |
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Consulta a pessoas | Consulta a veículos | ||
Batalhões com bodycam | -28,8% | -28,9% | |
Batalhões sem bodycam | -5,1% | -15,0% | |
Fonte: Centro de inteligência (CI) da PMESP |
A tabela 3, por seu turno, indica que, nos batalhões que passaram a adotar o bodycam, houve diminuição de consulta sobre pessoas e veículos nos bancos de dados, tanto da Polícia Militar, quanto dos outros bancos de dados do Estado de São Paulo. Isso nos induz a levantar a hipótese de que os policiais têm sido mais criteriosos nas abordagens policiais, fazendo-as de forma mais criteriosa e direcionada, uma vez que as apreensões de armas aumentaram, tanto quanto as prisões em flagrante.
Em síntese, podemos tirar duas conclusões. Em primeiro lugar, o fato de a tecnologia ser importante instrumento para a prestação de serviços públicos, com dignidade e respeito aos direitos fundamentais de ricos e pobres, de pretos e brancos. Em segundo lugar, podemos dizer que há uma parcela da direita, ainda retrógrada e arcaica, que continua a criticar a medida tomada por um grupo de oficiais muito competente e corajoso: Cel Fernando Alencar, Comandante Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Cel Marcos Valério, Subcomandante, e Cel Robson Cabanas, autor do projeto e Diretor de Comunicação Social.
Por derradeiro, uma parcela da esquerda, ultrapassada, também critica a medida, por não caracterizar mudança de pensamento, e sim decorrência de instrumentos tecnológicos. Pouco importa. A Polícia Militar, neste caso específico, caminha para uma mudança brutal de comportamento que talvez a traga, no médio e longo prazo, ao nível de polícias modernas, bem preparadas e respeitosas dos direitos e garantias individuais.