Julita Lemgruber
Socióloga, ex-diretora geral do sistema penitenciário e ex-ouvidora de polícia do estado do Rio de Janeiro e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)
Mariana Siracusa
Socióloga e pesquisadora do CESeC
Rachel Machado
Socióloga e pesquisadora do CESeC
A “guerra às drogas”, face mais bélica e destrutiva da atuação do Estado brasileiro, há muito é usada pelas polícias como álibi para reprimir violentamente o varejo de substâncias ilícitas que se dá nas favelas e periferias das grandes cidades. A escolha pelo enfrentamento justifica uma série de atrocidades que afeta moradores das áreas urbanas mais pobres e o caso do Rio de Janeiro é absolutamente paradigmático: apenas no ano de 2021, a polícia matou 1.354 pessoas. Chacinas, como a do Jacarezinho em maio do ano passado, quando a polícia matou 28 pessoas, ou a mais recente, no Alemão, no último dia 11, quando oito jovens foram mortos pelas polícias militar e rodoviária federal, acabam naturalizadas como estratégia de “guerra às drogas”. Ocupam as páginas de jornais hoje e amanhã são passado. Vira-se a página e a vida continua. Não para os moradores de favelas do Rio de Janeiro. A violência da polícia aterroriza quem mora nesses locais e atravessa os muros das escolas, como se verificou em recente pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.
Tiroteios e operações policiais provocam o fechamento de escolas, interrompem aulas, impossibilitam professores e diretores de chegarem ao seu local de trabalho. Estudantes vivenciam uma rotina de medo, insegurança e incerteza que influencia o seu aprendizado e tem consequências duradouras na saúde física e mental. Com o objetivo de investigar os impactos da chamada “guerra às drogas” na rede municipal de Educação do Rio de Janeiro, a pesquisa ‘Tiros no futuro” analisou os resultados escolares dos estudantes do 5º ano do ensino fundamental da rede pública carioca em 2019.
Para se entender a dimensão da tragédia que são os tiroteios frequentes na rotina dos moradores de favelas, em 2019 foram registrados 4.346 disparos de armas de fogo na cidade do Rio de Janeiro, de acordo com a plataforma interativa “Fogo Cruzado”. A partir desses dados, foi possível identificar que 74% das escolas da rede municipal do Rio foram afetadas, em 2019, por pelo menos um tiroteio com a presença de agentes de segurança pública e 57% dos estabelecimentos tiveram até dez episódios no seu entorno. Essa informação, suficientemente grave em si mesma, é ainda mais estarrecedora quando se verifica que apenas quatro escolas concentraram cerca de 90 tiroteios em seu entorno.
Além de examinar as informações contidas no “Fogo Cruzado”, um convênio firmado com a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro possibilitou a coleta de dados sobre operações policiais no entorno das escolas. Assim, verificou-se que, no ano de 2019, 295 unidades da rede municipal do Rio de Janeiro fecharam por pelo menos um turno em decorrência de operações policiais.
Mais chocante ainda, verificou-se que apenas cinco escolas do primeiro ciclo do ensino fundamental concentraram mais de vinte operações policiais no seu entorno em 2019. Quando se observa o perfil dos estudantes nessas escolas castigadas por tiroteios, chega-se à conclusão de que, quanto mais negro o perfil, mais violenta a escola, o que não surpreende quem conhece a força do racismo estrutural na sociedade brasileira. Assim como jovens negros são os que mais morrem em decorrência de intervenções policiais, são crianças negras as que mais sofrem estudando em escolas onde tiroteios entre a polícia e o varejo das drogas é mais intenso. Essa violência interfere na trajetória dos estudantes, afeta o desempenho escolar, interrompe aulas, sonhos e vidas.
Visto que a atuação dos agentes de segurança é distribuída de forma desigual pelos territórios da cidade, na pesquisa em questão compararam-se escolas que foram afetadas por pelo menos seis operações policiais em 2019 com outras sem registros de operações no mesmo ano. Os dois grupos de escolas são similares quanto à sua estrutura, ao perfil socioeconômico dos estudantes e à escolaridade de seus pais. A diferença é a exposição ou não às operações policiais.
Constatou-se, através desse exercício de comparação, que os estudantes do 5º ano mais afetados pela violência tiveram uma redução média de 7,2 pontos em Língua Portuguesa e 9,2 em Matemática, tomados os resultados da Prova Brasil 2019, avaliação padronizada do Ministério da Educação para aferir o desempenho escolar dos estudantes dos anos finais do primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental e do ensino médio. Considerando-se o ganho médio anual de proficiência esperado para essa etapa de ensino, a exposição a operações policiais violentas resulta em uma perda de 64% do aprendizado em língua portuguesa e, em matemática, a perda é de praticamente todo o aprendizado que o aluno deveria garantir durante o ano.
A redução da aprendizagem nos dias de hoje tem efeitos na geração de renda no futuro. Levando-se em conta o somatório dos rendimentos do trabalho obtidos ao longo do ciclo produtivo (16 a 65 anos), que é de R$ 617.440,00 para o trabalhador da cidade do Rio de Janeiro, o aluno de uma escola exposta a operações policiais pode deixar de ganhar R$24.698,00 ao longo da vida. Este valor seria equivalente a um “imposto” de 4% a ser pago pelo indivíduo sobre seus rendimentos futuros.
A diminuição na renda tem impacto direto na qualidade de vida e bem-estar de indivíduos que já são afetados por outras desigualdades: deixar de ganhar R$24 mil, em 2019, significa não adquirir 48 cestas básicas ou 377 botijões de gás ao longo da vida. Ou, ainda, deixar de pagar 6.098 passagens de ônibus no município do Rio de Janeiro, o que possibilitaria o deslocamento, com duas viagens diárias, de segunda a sexta-feira, por cerca de 13 anos de trabalho.
A opção do Estado em promover uma política de drogas ancorada no enfrentamento bélico em favelas e periferias acentua desigualdades sociais e raciais. Na educação, o efeito da violência produz impactos duradouros no desenvolvimento cognitivo, psicológico e na trajetória escolar de crianças e jovens. A guerra às drogas, além de custar caro aos cofres públicos, tirando recursos que poderiam ser investidos em outras áreas, como a própria educação, a saúde, a moradia popular e o saneamento básico, custa caro para o futuro de milhares de estudantes. interrompendo projetos, sonhos e muitas vezes a própria vida.