Dennis Pacheco
Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O controle da atividade policial retomou com alguma frequência as manchetes ao longo do ano de 2021, tendo aportado ao campo da segurança pública bastante atenção justamente num momento em que os setores da economia e da saúde têm monopolizado a preocupação dos brasileiros. A recorrência de escândalos envolvendo abusos por parte de policiais sinaliza tanto a importância do setor quanto as expectativas nutridas pela população de que ele seja transformado. Mais especificamente, aponta para a insustentabilidade do arbítrio de um determinado modelo de prática policial.
A recém-lançada edição 2022 do Monitor do Uso da Força na América Latina e no Caribe traz uma comparação entre indicadores de incidência e abuso por parte das forças policiais em 8 países da região: Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Jamaica, México, Trinidad e Tobago e Venezuela.
Para além da comparação regional (realizada a partir de dados referentes aos anos de 2018 e 2019), um ponto forte da pesquisa (que já havia sido realizada com dados menos recentes em 2019), é a construção dos indicadores, que retratam tipos específicos de ocorrência, mortes causadas e sofridas por policiais em serviço, cujo instrumento foi arma de fogo. Se tradicionalmente utilizamos taxas construídas a partir de dados oficiais como indicadores de uso da força e vitimização policial, constituem inovações importantes do Monitor o uso híbrido de fontes oficiais e não-oficiais (isto é, de dados da imprensa), bem como a construção de indicadores mais robustos. O primeiro grupo de indicadores, de incidência, busca captar a intensidade do uso da força contra cidadãos. Nesta categoria entram:
I-1. número absoluto de mortes causadas pela polícia,
I-2. taxa de mortes causadas pela polícia por 100 mil habitantes,
I-3. relação entre número de mortes causadas pela polícia e número de agentes policiais na ativa,
I-4. relação entre número de mortes causadas pela polícia e número de prisões,
I-5. relação entre número de mortes causadas pela polícia e apreensões de armas,
I-6. número absoluto de policiais mortos,
I7. relação entre número de policiais mortos por 1000 agentes.
Já o segundo grupo de indicadores, de abuso, busca captar padrões de uso da força e caracterizá-los enquanto abusivos ou não. Desta categoria, fazem parte:
A-1. proporção de civis mortos intencionalmente por disparo de arma de fogo efetuado por policiais em relação ao total de homicídios intencionais,
A-2. proporção de civis mortos intencionalmente por disparo de arma de fogo efetuado por policiais em relação ao total de policiais mortos por arma de fogo em serviço,
A-3. proporção de civis mortos intencionalmente por disparo de arma de fogo efetuado por policiais em relação ao total de civis feridos por disparo de arma de fogo efetuado por policiais em serviço,
A-4. razão entre (civis mortos intencionalmente por disparo de arma de fogo efetuado por policiais/total de civis feridos por disparo de arma de fogo efetuado por policiais em serviço) e (policiais mortos intencionalmente por disparo de arma de fogo enquanto em serviço/total de policiais feridos por disparo de arma de fogo enquanto em serviço),
A-5. número médio de civis mortos por disparo de arma de fogo efetuado por policiais em serviço por incidente/ocorrência.
No que diz respeito à incidência do uso da força, as polícias brasileiras estão entre as pior posicionadas, especialmente quando consideramos indicadores de proporcionalidade. Quando consideramos a proporção entre civis mortos pela polícia para cada mil policiais, o Brasil fica atrás somente da Venezuela, onde morrem 56 civis para cada 1000 policiais na ativa. No Brasil, morrem 10 civis para cada 1000 policiais na ativa. Seguido por Trinidad e Tobago e El Salvador, o país encontra-se numa posição notadamente antidemocrática no que diz respeito à incidência do uso da força por suas polícias.
Nossa posição é, contudo, ainda pior quando consideramos os indicadores de abuso da força por parte das polícias. Temos a maior (des)proporção de civis mortos em relação a policiais mortos, o que, por si só, refuta a narrativa padrão de resistência à atividade policial como causa das mortes. São 114 civis mortos para cada policial morto, denotando claramente a ausência de qualquer proporcionalidade no uso da força. Ainda mais preocupante que isso é o fato de essa (des)proporção seguir aumentando ao longo do último triênio.
Considerando o recorte situacional da pesquisa, mais de 11% do total de mortes violentas intencionais foram causadas pelas polícias no Brasil, que só fica atrás da Venezuela, onde a polícia foi responsável por 1/3 do total de mortes violentas intencionais. Com a naturalização de indicadores de abuso que saltam aos olhos em comparação à maior parte de uma das regiões mais violentas do planeta, é possível falarmos em autorização para matar, especialmente considerando que, tivesse sido aprovado como proposto, o infame “projeto anticrime” do ex-ministro de Bolsonaro, Sérgio Moro, ampliaria junto com as condicionantes do excludente de ilicitude ainda mais a barbárie das estatísticas de mortes causadas pelas polícias no Brasil.
Cabe ressaltar que em 9 das 27 unidades da Federação (PR, MT, RN, PA, RJ, BA, SE, GO, AP) despontam valores de indicadores de abuso acima das médias nacionais, demonstrando que há diferentes padrões territoriais de incidência e abuso da força letal por parte das polícias no país.
A naturalização da barbárie de nosso modelo de policiamento não se produz, contudo, a partir de um vazio. A pesquisa notou que, para o caso brasileiro, a cobertura da imprensa é muito maior para policiais mortos (cerca de 40% dos casos são noticiados), que para mortes de civis, cuja cobertura é de cerca de 3,5%. Até muito recentemente, era comum a reprodução da narrativa padrão de resistência que criminaliza a vítima. Além disso, a maioria das vítimas é jovem, negra, pobre, de baixa escolaridade e residente de periferias e, portanto, codificada como criminosa por excelência num país de imaginário racista. Existe toda uma complexa rede de produção de demanda por um modelo de policiamento movido pela autorização para matar (jovens negros e seus adjacentes, periféricos e pobres) que, embora enfrentada no âmbito discursivo e simbólico da opinião pública, não tem encontrado janelas de oportunidade para transformar o modelo de policiamento de alta e crescente letalidade implantado em determinados territórios do país.