Alberto Kopittke
Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
*Texto originalmente publicado na edição número 88 do Fonte Segura, em 12 de maio de 2021
Com uma grande união de forças, liderança política e investimento financeiro, seria plenamente possível construir um plano capaz de reduzir a violência no Rio de Janeiro. Sim, o Rio de Janeiro é um dos maiores desafios para a Segurança Pública do mundo, mas já existe conhecimento suficiente acumulado sobre o que funciona para reduzir a violência e construir um grande e exitoso plano na cidade. Não se acabaria com o tráfico de drogas, assim como ele não acabou em Nova York, nem em Medellín, mas seria possível retirar das organizações criminosas o controle de comunidades, armamento de grande porte e controlar homicídios e roubos.
Com um plano de longo prazo, suprapartidário, que envolvesse um esforço de união nacional, com ações bem planejadas e coordenadas que viriam desde a reformulação do sistema prisional, um plano de reurbanização, a implementação de metodologias estruturadas de prevenção à violência e programas sociais, tecnologia de ponta e um significativo fortalecimento da área de inteligência das forças de segurança, sem dúvida conseguiria-se reduzir a violência de forma sustentável e permanente na cidade.
Tarefa mais difícil e demorada, no entanto, é reduzir a violência e a corrupção policiais. A chacina de Jacarezinho veio se somar a um macabro e longo histórico de episódios brutais provocados por algumas forças de segurança pública do país, totalmente fora de qualquer parâmetro razoável, compreensível e aceitável. Além das dezenas de jovens, a cada nova chacina morre também nossa democracia.
Nos EUA, o chamado “Primeiro Grande Despertar” contra a violência policial chacoalhou o país entre os anos 1960 e 1970, de forma muito mais forte do que nos episódios recentes das mortes de David Brown e George Floyd. A comunidade negra daquele país se organizou e passou a não aceitar mais a forma como era tratada pela polícia, resultando em grandes manifestações e muitos episódios de confrontos violentos que paralisaram as grandes cidades, às vezes por semanas, e em muitos casos resultaram em dezenas de mortes.
Como consequência daquelas mobilizações, prefeitos progressistas, chefes de polícia reformistas e a Suprema Corte realizaram reformas profundas sobre o controle do uso da força. Essas reformas incluíram a demissão de dezenas de policiais com histórico de violência, a redução da discricionariedade dos policiais, o fortalecimento dos mecanismos de controle interno, o aumento da transparência e a imposição de indenizações milionárias pela justiça como consequência de episódios de violência. Como resultado, entre 1970 e 1985, o número de mortes provocadas pela polícia caiu 51%, sendo que essa queda foi de 72% entre jovens negros entre 15 a 34 anos – e a diferença entre o número de negros e brancos mortos pela polícia caiu de 7,5 vezes para 3. O problema é historicamente tão profundo que mais de mil pessoas ainda nos dias de hoje são mortas pela polícia, muitas vezes com brutalidade racista.
Vinte anos depois das grandes reformas internas, fato é que uma nova geração de policiais, formada dentro de uma nova mentalidade, liderou experiências significativas de redução da criminalidade e as polícias saíram fortalecidas e modernizadas desse processo, além de mais efetivas para prevenirem a violência. Essas novas polícias representaram o avanço decisivo para muitas das grandes cidades norte-americanas atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história.
Já no Brasil, nem mesmo as 45 mil mortes provocadas por intervenção policial na última década são capazes de mobilizar forças para dialogar sobre mudanças necessárias nas corporações. Ainda que ela seja agora exaltada como virtude, a violência policial não começou no atual governo. Durante os sete governos democráticos que o país teve desde a Constituição de 1988, com importantes exceções, o tema não foi tratado com a prioridade devida, o que agora vemos que cobra um alto preço para a democracia no país.
E, mesmo depois de tudo o que vivemos nos últimos anos, ainda não é possível vislumbrar que algum novo governante democrático que suba a rampa do Palácio do Planalto apresentará uma agenda de grande impacto nessa área. O Governo Federal precisa assumir um novo papel na Segurança Pública. Instituições estaduais não conseguem investigar e promover mudanças de fato em situações tão graves como a do Rio de Janeiro; assim como a Inspetoria do Exército, responsável pelo controle das polícias militares, e o Ministério Público, responsável pelo controle das polícias civis, foram incapazes de promover avanços substanciais nesse tema desde a Constituição de 1988.
Um sistema federal de controle das polícias, com uma nova instituição federal especializada, poderia ter um papel importante. Nos EUA, a Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça tem poderes para realizar investigações e processar policiais e até mesmo de realizar intervenções sobre as polícias, com o afastamento de toda a sua direção e a realização de remodelações internas profundas, o que já foi feito 17 vezes desde 1994.
A Inglaterra, que tem índices mínimos de criminalidade e de violência policial, possui um órgão federal chamado Escritório Independente sobre Conduta Policial. Sempre que uma das 43 ouvidorias estaduais recebe uma denúncia de um fato grave cometido por algum policial, ele deve obrigatoriamente repassar essa denúncia para o Escritório Nacional, que inicialmente monitora as providências adotadas em nível estadual e quando necessário abre uma investigação independente sobre o caso. O órgão possui 890 servidores e um orçamento de 73 milhões de libras, o equivalente a R$ 335 milhões. As investigações podem resultar em denúncias ao Ministério Público Federal ou em recomendações para modificações em protocolos operacionais, que têm poder vinculativo e devem obrigatoriamente ser adotadas pelas polícias.
Como se vê por esses exemplos, o tema é uma preocupação permanente das democracias liberais consolidadas e não de regimes autoritários de esquerda ou de direita.
No Brasil, algumas medidas que não exigiriam grande volume de recursos, mas sim a disposição política de lideranças democráticas, poderiam gerar grande impacto. Uma pesquisa anual de vitimização e avaliação das polícias, como é feita em muitos países desenvolvidos, poderia orientar o repasse de recursos federais e determinar a abertura de investigações especiais naqueles locais em que muitas pessoas afirmarem não confiar na polícia ou serem vítimas de violência policial. Relatórios anuais de letalidade policial, uso de armas de fogo e de todas as formas de uso da força poderiam mostrar as unidades onde o problema da violência se concentra. Sistemas de alerta precoce poderiam auxiliar a expulsar novos policiais de perfil violento.
Câmeras de corpo ligadas automaticamente poderiam ajudar a trazer informações importantes sobre as ocorrências, assim como a obrigatoriedade de acompanhamento por diferentes instituições de controle das operações de risco em salas de comando e controle especiais, com o registro formal das ordens de toda cadeia de comando. A restrição de determinados tipos de treinamento e armas a unidades especiais, empregadas a partir de um protocolo nacional e forças tarefas entre o Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal poderiam combater grupos de extermínio altamente letais. Essas são algumas das mudanças possíveis, sem falar ainda em outras medidas que o Poder Judiciário poderia adotar, como a responsabilização dos superiores quando se tratar de operações oficiais.
É sempre importante destacar que, embora o tema seja muito grave, ele é altamente concentrado em alguns estados brasileiros e análises mais profundas possivelmente demonstrarão que se concentram em poucas unidades do conjunto das instituições e em pequenos grupos dentro delas, que mancham reiteradamente a imagem das instituições. Reformas internas importantes inclusive já têm sido feitas em algumas instituições do país e esse processo deveria se tornar uma bandeira de todos aqueles que efetivamente defendem policiais modernas e efetivas contra o crime.
A inédita Lei George Floyd, fruto de mais um despertar e da nova onda de mudanças em curso nos EUA, tem como foco a regulação do uso da força pelas polícias e deverá ser aprovada nos próximos dias. Cabe pelo menos sonhar com um diálogo amplo das forças democráticas da sociedade brasileira sobre o que poderia vir a ser uma Lei Jacarezinho, para ajudar o país a dar os primeiros passos contra chacinas a céu aberto executadas por quem deveria antes de tudo proteger e não manchar comunidades inteiras de pavor e de sangue.