Múltiplas Vozes 12/11/2025

A reinvenção da Doutrina Monroe? Trump, crime organizado e América Latina

O que hoje observamos é uma velha tática dos EUA de usar o discurso do combate às drogas e ao narcotráfico como pretexto para intervenções políticas e militares nos países do Sul global

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Eduardo Dyna

Doutorando em Sociologia (PPGS/UFSCar) e membro do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos

Otávio Ravagnani

Doutorando em Sociologia (PPGS/UFSCar) e membro do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos

O ano de 2025 está sendo marcado por um conjunto de acontecimentos que aproximam as temáticas do crime organizado, tráfico de drogas e geopolítica. O comércio de drogas ilegalizadas é uma atividade de alta lucratividade que envolve complexa rede de atores estatais e não estatais, lavagem de dinheiro e integrações com economias formais e diversas rotas comerciais (rodoviárias, fluviais, marítimas e aéreas). As substâncias são produzidas em países como Peru, Colômbia e Bolívia (derivados de coca) e Paraguai (maconha), mas Brasil, Venezuela e Equador atuam como entrepostos tanto para o varejo interno quanto para o atacado destinado a grandes mercados consumidores globais, notadamente Europa e Estados Unidos. A lógica subjacente a esse comércio é intrinsecamente capitalista, baseada no lucro e na exploração. Desta forma, o tráfico de drogas constitui um complexo fluxo de circulação e exportação, no qual as organizações criminais desempenham funções, conectando países produtores e de trânsito aos de recepção e consumo.

Esse cenário constituiu mudanças nos discursos e práticas nos EUA sob o regime de Donald Trump. O governo norte-americano está realizando estratégias na América Latina que produzem uma percepção dual: por um lado, são executadas ações direcionadas ao combate a grupos narcotraficantes presentes em diversos países, como Brasil, Equador, El Salvador, Colômbia, México e, principalmente, Venezuela. Contudo, essa retórica de combate ao crime também gera formas de desestabilização de governos e oposição aos interesses de Trump, constituindo, direta ou indiretamente, maneiras de intervenção externa e ataques à soberania dos países latino-americanos. As ações do governo estadunidense não são fatos isolados. Seu discurso é aplaudido por setores das sociedades latino-americanas, principalmente forças conservadores que reiteram medidas mais punitivas, sem medir as consequências da repressão e não indo à raiz do problema, o que penetra as ideias de uma intervenção externa para ajudar a combater a criminalidade organizada.

O Equador possui uma localização estratégica para a exportação de drogas. Nesse país, os grupos criminais Los Lobos e Los Choneros, apoiados por cartéis mexicanos e colombianos, exploram o narcotráfico e estabelecem uma governança criminal própria. Desde os governos de Guillermo Lasso e do reeleito Daniel Noboa, intensificaram-se os conflitos entre as forças de segurança e os grupos criminais, que foram incorporados como terroristas. Foram adotadas medidas de exceção com o objetivo de restabelecer a ordem, com apoio dos EUA.

No México, a literatura, a opinião pública e a imprensa já notam a persistência de problemas estruturais causados por grupos criminais que se engajam em disputas internas, em conflito com as forças de segurança, e que expandem sua atuação para outros países do continente.

Os governos do Morena (Movimiento de Renovación Nacional), de Andrés Manuel López Obrador e de Claudia Sheinbaum, priorizaram políticas sociais e não conseguiram conter a violência criminal nem a expansão desses grupos. Os governos mexicanos têm se dedicado a negociações diplomáticas e a discursos públicos sobre imigração e crime organizado, motivados pelo temor de que Trump decrete os Cartéis de Sinaloa e Jalisco como terroristas, o que poderia justificar uma intervenção unilateral no território vizinho, o que impulsionaria a instabilidade no México.

Já a Venezuela emerge como o país mais impactado pela política externa de Trump, com incursões militares no Caribe, discursos oficiais que pleiteiam uma possível invasão e a derrubada do governo, além de ataques a embarcações supostamente ligadas ao narcotráfico, resultando na morte de pescadores, sob o pretexto do combate ao crime organizado. Além disso, como forma de pressão simbólico-material, os Estados Unidos enviaram o porta-aviões mais letal do mundo ao Caribe. O grupo criminal visado pelo governo Trump é o Tren de Aragua, que foi colocado como terrorista pelos EUA e impulsionado com novas medidas de repressão da máquina de guerra ianque, mas as ações de combate acabam por afetar mais a população e o governo venezuelano.

O Brasil se configurou como um importante entreposto no narcotráfico, abrangendo desde a produção nos países vizinhos, passando pelas fronteiras até o abastecimento dos centros urbanos e a exportação via portos litorâneos. Ao mesmo tempo, em números absolutos, figura como um dos maiores consumidores de drogas do mundo. Os principais grupos responsáveis pela distribuição, comercialização e exportação são o PCC e o CV, cujas operações são facilitadas pelo conluio de agentes estatais, empresários e outros indivíduos.

Em maio de 2025, antes das recentes ações do governo Trump de taxar o comércio com o Brasil, punir juízes do STF e servir aos interesses das big techs, houve tentativas, apoiadas por setores no parlamento, de classificar o PCC e o CV como grupos terroristas, proposta negada pelo governo federal. O combate ao crime é um fator crucial e que deve ser realizado de modo eficiente. Contudo, acatar preceitos estadunidenses de terrorismo é deixar de jogar o jogo para atender aos interesses dos EUA.

Esse é o tipo da estratégia do governo Trump que vemos em 2025: explorar a pauta do combate ao crime e do narcotráfico para servir aos seus próprios interesses. Pois é mais fácil intervir em outro país, coagir a jurisdição e parlamento, reforçando discursos sobre crime e terrorismo, em vez de regular o maior mercado consumidor de drogas e criar mecanismos de saúde pública de qualidade e cuidados. Mas por que não fazer? Para apenas iniciar essa complexa discussão, há duas lógicas que se completam: manter um discurso e práticas que mobilizem para cenário de guerra, intervenção e exceções (fortalecendo o imaginário da doutrina Monroe) e continuar a lucrar com o maior mercado consumidor de drogas do mundo.

O que observamos, portanto, é a reinvenção do acionamento do discurso de “combate às drogas” como legitimador de intervenções externas dos Estados Unidos. Isso não é nenhuma novidade, mas sim uma estratégia histórica de longa data da nação imperialista. Desde as guerras do ópio, no século XIX, é empregado o discurso moral das drogas com o objetivo de legitimar interesses econômicos e geopolíticos. No início do século XX, o país financiou as convenções sobre o ópio com um duplo interesse: melhorar suas relações com a China e minar a influência da Inglaterra, seu principal concorrente. Mas em meados deste século as intervenções ianques deixariam de ser “apenas diplomáticas”.

Ao declarar “guerra às drogas”, na década de 1970, Richard Nixon abriu caminho para a perpetuação de uma nova estratégia de política externa que legitimaria as intervenções estadunidenses sobre o pretexto de combate ao “maior inimigo do ocidente”, ou seja, as drogas. Mas, como sabemos, as vítimas dessa guerra não são as substâncias. A grande sacada de Nixon foi diferenciar os países produtores dos países consumidores, ou seja, países-fonte (agressores) de países-alvo (vítimas). Convenientemente, os produtores estão no Sul Global. E as vítimas, no Norte. Daí em diante, ocorreu uma série de intervenções estadunidenses na América Latina.

Em 1989, os EUA deflagraram a Operação Causa Justa, invadindo o Panamá com o objetivo declarado de capturar Manuel Noriega, que havia sido indiciado por acusações de narcotráfico e lavagem de dinheiro. Tratou-se de uma intervenção militar direta e em grande escala. A operação, contudo, é amplamente percebida como produto de motivações geopolíticas mais amplas, como a proteção de interesses norte-americanos em relação ao Canal do Panamá.

Lançado nos anos 2000, o Plano Colômbia foi um acordo bilateral entre EUA e Colômbia, focado inicialmente no narcotráfico e nos grupos insurgentes. O país norte-americano forneceu bilhões de dólares em ajuda militar e econômica, apoiando ativamente a pulverização aérea de cultivos de coca. Essas ações, contudo, geram severos impactos políticos, sociais e ambientais. Operações militares associadas ao Plano foram acusadas de ferir diversos direitos humanos, sendo que relatórios de organizações como a Anistia Internacional apontaram para o aumento no número de mortes e assassinatos políticos. A fumigação de plantações sob o pretexto de combater o cultivo de coca poluiu solos e corpos d’água e impactou diretamente os pequenos agricultores. Críticos sugerem que o Plano, a longo prazo, pode ter garantido privilégios aos ianques no comércio de recursos minerais da Colômbia, como petróleo, ouro e carvão.

Já em 2007, foi lançada a Iniciativa Mérida, um pacote de segurança e cooperação internacional entre os EUA, México e países da América Central visando “combater o crime organizado e o narcotráfico”. Os norte-americanos forneceram equipamentos militares e de vigilância e treinamento para as forças de segurança do México. O resultado? Aumento vertiginoso da violência no país do Sul e denúncias de violação de direitos humanos. A pressão militar levou à fragmentação dos cartéis em grupos menores e mais violentos, que intensificaram as disputas por territórios.

O que hoje observamos é uma velha tática da potência imperialista de usar o discurso do combate às drogas e ao narcotráfico como pretexto para intervenções políticas e militares nos países do Sul global. Mas é importante que não nos esqueçamos: as intervenções ianques não foram capazes de refrear a produção, venda e consumo de substâncias. Ao revés, esses números nunca deixaram de crescer. Enquanto os Estados Unidos saem desses processos com maior influência geopolítica e econômica, os países-alvo são relegados ao aumento da violência, violação de direitos humanos e fragilidade política.

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