Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais (UnB); conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)
A data de 8 de janeiro de 2023 entrou para os anais da história brasileira por ter sido expressa tentativa de golpe contra a democracia perpetrada por bolsonaristas insatisfeitos com o resultado das últimas eleições presidenciais. Pior que tudo se passou bem debaixo dos olhos das forças de ordem da Capital Federal, especialmente do Exército e da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). Investigações em curso apontam desde omissão até atuação deliberada de agentes que deveriam prover a segurança da área dos Três Poderes, em Brasília. De forma geral, nesse trágico episódio ficou demonstrado alinhamento ideológico de setores das forças da Capital Federal com o bolsonarismo, o que possivelmente explica a falta de empenho deles no enfrentamento dos atos golpistas.
Destaca-se que a PMDF possui expertise em acompanhamento e enfrentamento de manifestações na região da Esplanada dos Ministérios, do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e Palácio da Alvorada, inclusive conta com um batalhão para atuar especificamente nessa localidade. Com efeito, frente aos movimentos golpistas que pairavam em Brasília, pelo menos a PMDF deveria estar em prontidão para qualquer eventualidade no coração administrativo do país. Mas não foi isso o que ocorreu. O que se viu foi ausência de planejamento nas ações de policiamento. Em virtude desse escárnio com a segurança da Capital do país, além das medidas drásticas de intervenção federal e afastamento do governador distrital, foram presos membros da cúpula da segurança pública, à época o secretário era Anderson Torres e o comandante geral da PMDF, Augusto Fábio.
A situação das forças de segurança pública do Distrito Federal (Polícia Civil, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros) é peculiar, porque elas são mantidas e organizadas pela União, embora se submetam ao governador distrital, como as demais polícias estaduais. Segundo norma constitucional, o ente distrital recebe um fundo repassado pela União para custear as corporações da Capital Federal. Trata-se do Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF), que em 2023 alcançou orçamento recorde de quase 23 bilhões de reais[1]. Ressalte-se, o valor do FCDF em 2023 supera o do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que está previsto em 19 bilhões de reais[2]. A bem da verdade, o FCDF não se destina só a arcar a segurança pública, pois também auxilia o Distrito Federal na execução de outros serviços públicos. Assim, entende-se que o FCDF é uma espécie de compensação financeira ao Distrito Federal por abrigar a Capital do país, com todos seus encargos e responsabilidades.
Note-se que um dos principais argumentos para que a União mantenha e organize as forças de segurança do Distrito Federal, mesmo que por meio do FCDF, é que cabe a tais corporações prestar policiamento nas regiões da Esplanada dos Ministérios, na Praça dos Três Poderes, no setor de embaixadas; além de zelar pela incolumidade de diversas autoridades nacionais e estrangeiras que circulam em Brasília. Todavia isso não impediu o levante golpista, o que colocou em xeque a imparcialidade das forças de ordem da Capital Federal– principalmente da PMDF, responsável pelo policiamento ostensivo – em manter a segurança no centro administrativo do país. Isso a despeito de quem esteja ocupando o posto de presidente da República.
Em decorrência dos atos de 8 de janeiro, a gestão do presidente Lula tem cogitado a criação de uma Guarda Nacional a fim de substituir as atuais funções de policiamento das forças da Capital Federal na área dos Três Poderes. Essa medida ainda não evoluiu, visto que por ora soa mais como revanchismo do que como modernização na segurança. De todo modo, é certo que paira suspeita sobre segmentos das corporações do Distrito Federal, tendo em vista que vários de seus integrantes permanecem como base ativa e militante do bolsonarismo. Por conta disso, o projeto da Guarda Nacional, encabeçado pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, não é só visto como mecanismo para guarnecer o centro do poder do país de possíveis ataques, mas também como meio para arredar a influência do bolsonarismo, a qual é inconteste em setores das atuais forças do Distrito Federal.
Além disso, há mais evidências da exasperação do governo Lula com as corporações da Capital Federal. Por exemplo, arrasta-se há meses uma proposta de recomposição salarial para os policiais do Distrito Federal, a qual, apesar de ter o aval do governo distrital, que é o gestor do FCDF, tem encontrado pouca vontade na esfera federal. Para piorar a situação, o próprio FCDF se transformou num imbróglio entre o Buriti e o Planalto, visto que referido fundo foi incluído na proposta do novo arcabouço fiscal, tendo assim restrições para evoluções futuras, o que não aconteceu no teto de gasto do governo Temer. Tais atitudes do governo Lula, embora encontrem justificativa no discurso da responsabilidade fiscal, parecem sinalizar retaliações às tratativas golpistas ocorridas à vista do governo distrital e das forças de segurança sob sua responsabilidade.
Os fatos que culminaram com o tumulto de 8 de janeiro mostraram a face antidemocrática de diversos segmentos da sociedade brasileira, inclusive de integrantes das próprias polícias da Capital Federal. É triste. As polícias ainda flertam com atitudes golpistas, justamente elas, que devem defender a lei e a ordem. Portanto, para além das relações com o governo Lula, as corporações da Capital da República, sobretudo as de veste militar, precisam mostrar que são mais polícias do que políticas; ademais, necessitam firmar que são instituições de Estado que se filiam à democracia. Caso contrário, elas ficarão maculadas pela nefasta experiência nos atos golpistas promovidos por aliados e seguidores do ex-presidente Bolsonaro.
[1] Portal Transparência CGU. Disponível em: https://portaldatransparencia.gov.br/orgaos/25915?ano=2023
[2] Portal Transparência CGU. Disponível em: https://portaldatransparencia.gov.br/orgaos-superiores/30000-ministerio-da-justica-e-seguranca-publica