Múltiplas Vozes 18/09/2024

Vitimização por agressão física no Brasil: mais uma vez, uma questão de gênero e cor

As estatísticas oficiais são insuficientes para aferir o fenômeno da violência contra mulheres, o que reforça a importância de pesquisas de vitimização e a necessidade da expansão e aprimoramento de políticas de enfrentamento

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Isabella Matosinhos

Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais

Os números oficiais da violência contra a mulher no Brasil são historicamente altos e não param de crescer (FBSP, 2024)[1]. Essa situação torna-se ainda mais alarmante quando olhamos para os resultados de pesquisas de vitimização, como a Pesquisa de Vitimização e Percepção sobre Violência e Segurança Pública, produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto Datafolha em 2024.

Esse tipo de pesquisa coleta informações sobre a experiência de indivíduos em relação a certos tipos de crimes ou atos de violência, independentemente de tais situações terem sido reportadas às autoridades. Assim, por contabilizarem também a parcela de crimes que não entram nas estatísticas oficiais, essas pesquisas contribuem para que tenhamos um panorama mais preciso do fenômeno da criminalidade.

No caso da violência contra a mulher, o panorama é cruel. Quando a pesquisa de vitimização pelo FBSP e Datafolha pergunta se “nos últimos 12 meses você foi vítima de agressão (em casa e na rua)?”, 4,7% das respostas foram positivas. Em números absolutos, estamos falando de pelo menos 4,4 milhões de brasileiros[2]. Desse total, 56,3% são mulheres e 43,7% são homens.

Para além do fato de as mulheres serem desproporcionalmente mais afetadas, o retrato geral dessa vitimização mostra uma violência que atinge majoritariamente pessoas jovens (49% das vítimas adultas têm entre 16 a 34 anos), negras (56,8%), com filhos (64,8%), que não completaram o Ensino Médio (51,6%) e cuja renda mensal familiar é de até três salários mínimos (74,4%).

A prevalência da violência física entre as mulheres converge com os achados de outras pesquisas baseadas em outras fontes de dados – registros de ocorrência policiais (FBSP, 2024)[3] e notificações do Sistema de Saúde (Cerqueira e Bueno, 2024)[4]. Cada uma delas revela um país que ainda enfrenta desafios significativos para garantir a segurança e o bem-estar das mulheres, demonstrando que a violência de gênero é um problema estrutural na sociedade brasileira.

Os resultados da pesquisa de vitimização comprovam isso e apontam para um cenário que é ainda mais violento do que o mostrado pelas estatísticas oficiais. Estamos falando de pelo menos 2,4 milhões de mulheres que sofreram agressão física entre junho de 2023 e 2024. Por sua vez, os dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2024[5]) apontam um total de 258.941 registros de lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica, com vítimas mulheres, em 2023.

Embora esses dois dados não sejam exatamente comparáveis (em razão de diferenças na coleta e na definição da violência[6]), ambos fornecem indicadores de agressões físicas contra mulheres, semelhança esta que permite aproximá-los para mostrar que, mesmo as cifras oficiais sendo altas – correspondendo a 709 agressões diárias em 2023 –, quando a conta é feita a partir dos resultados da vitimização, chega-se a 6.790 agressões físicas por dia. Essa aproximação mostra, entre outros aspectos, a insuficiência das estatísticas oficiais para medir o fenômeno da violência contra mulheres, a importância de pesquisas de vitimização, além de reforçar a necessidade da expansão e aprimoramento de políticas de enfrentamento.

Para além da violência de gênero, a faixa etária das vítimas das agressões indica que são os jovens o grupo etário mais vulnerável à violência física. Isso pode estar relacionado a diversos fatores, como a maior exposição à violência e envolvimento em situações de risco (como frequentar bares e festas, onde podem ocorrer situações que culminam em conflitos e embates físicos). Outro fator é a pressão por se conformar a valores que informam padrões de masculinidade e feminilidade que, no caso dos homens, pressupõem o uso da violência e, no caso das mulheres, pode reverberar na submissão a dinâmicas de poder e controle que, não raro, moldam os relacionamentos afetivos, resultando em situações de violência doméstica (Martins, Goulart, Rodrigues, 2021[7]).

Na análise da faixa etária, é preciso considerar também que, mesmo se tratando de uma pesquisa de vitimização, a violência pode ser menos visível ou subnotificada em algumas faixas, como a infância e a velhice. Isso pode ocorrer, entre outros fatores, porque esses grupos precisam de cuidados de outras pessoas. Além disso, as crianças não aparecem nos resultados, dado que a pesquisa foi realizada com pessoas de 16 anos ou mais. Em contraste, os adultos ficam mais visíveis.

Em relação à cor/raça prevalente, seguindo o padrão das demais formas de violência no Brasil, 63% das vítimas são negras. Para fins de comparação, 78% do total de mortes violentas intencionais de 2023 vitimaram pessoas negras. Entre as mulheres negras, o percentual em 2023 é de 66,9% (FBSP, 2024[8]).

Outras características de perfil revelam a prevalência de agressão física entre o grupo com escolaridade até o ensino médio incompleto (agregação de todos que nunca estudaram ou que, no máximo, estudaram até o ensino médio incompleto[9]) (51,6%). Por sua vez, uma vez tendo o Ensino Médio completo, a prevalência cai conforme o grau de escolaridade sobe, sendo o grupo dos pós-graduados o que menos sofreu agressões (4,3%).

Para a renda familiar, a prevalência é de pessoas cuja renda familiar vai de 0 até 3 salários mínimos (74,4%). Olhando para cada faixa de renda separadamente, a primeira faixa, de até 1 salário mínimo, concentra 30,0% das agressões físicas. De outro lado, as menores proporções estão entre pessoas com rendas familiares mais altas (mais de 10 salários mínimos) (4,8%). Em termos de parentalidade, a prevalência é maior entre quem tem filho (64,8%).

Por fim, analisando de forma conjunta algumas variáveis prevalentes – mulheres, pessoas negras, pessoas que têm filhos, que não completaram o Ensino Médio, e cuja renda familiar é de até 3 salários mínimos –, ainda que estes traços não sejam necessariamente cumulativos, se essas são as características principais que informam a vitimização por agressão física no Brasil no período analisado, uma lente de análise é pensar o fenômeno como um braço da violência contra a mulher, abordando interseccionalmente gênero, raça e fatores socioeconômicos.

Ainda que homens e mulheres vivenciem agressão física, o fato de que são as mulheres as mais agredidas, somado à alta prevalência de pessoas negras, chama a atenção para a interseccionalidade entre gênero e raça como um fator crítico na análise da violência. Ainda, como a maior parte das vítimas têm filhos, a parentalidade deve entrar na análise também como um fator que aumenta a complexidade das dinâmicas de poder e controle em relacionamentos abusivos. Considerando que o cuidado com os filhos ainda recai mais sobre a mulher do que sobre o homem (Hirata, 2016[10]), mulheres com filhos podem enfrentar barreiras adicionais ao buscar ajuda ou ao deixar uma situação violenta, seja por medo de perder a guarda dos filhos, seja por dependência financeira ou outras razões. A sobrecarga de responsabilidades e o isolamento social que muitas vezes acompanham a criação de filhos também podem contribuir para a perpetuação da violência. Especialmente quando negras, e quando a renda familiar é baixa.

Em outras palavras, se ser mulher é a característica inicial do grupo prevalente de vitimização por agressão física, cada nova camada que desenha e completa o perfil desse grupo acentua sua vulnerabilidade. Deste modo, ser mulher, ser jovem, ter a cor da pele negra, ter filhos, ter baixa escolaridade e baixa renda são características que formam não só um perfil, mas um perfil de vulnerabilidade.

O olhar conjunto e crítico para essas variáveis ajuda a compreender a vitimização por agressão física e pensar como este é um fenômeno que possivelmente é fortemente influenciado por fatores estruturais de desigualdade. A violência contra a mulher, nesse contexto, não é apenas uma questão de gênero, mas está entrelaçada com questões de raça, classe e condições socioeconômicas.

 

REFERÊNCIAS
[1] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024
[2] Considerando a margem de erro de 2% da pesquisa e a frequência expandida para a população mínima, o número estimado é de 4.402.202 brasileiros, incluindo homens e mulheres.
[3] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024.
[4] CERQUEIRA, Daniel; BUENO, Samira (coord.). Atlas da violência 2024. Brasília: Ipea; FBSP, 2024.
[5] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024.
[6] Os dados não são exatamente comparáveis porque o período de tempo não é precisamente o mesmo: a pesquisa de vitimização contabiliza um ano entre junho de 2023 e junho de 2024, enquanto os dados do 18º Anuário contam um ano entre janeiro e dezembro de 2023. Além disso, a natureza da violência medida tem contornos levemente diferentes: a pesquisa de vitimização contabiliza a ocorrência de agressão física ocorridas no ambiente doméstico e na rua, oferecendo uma visão mais ampla do fenômeno. Em contraste, o 18º Anuário se concentra especificamente em incidentes registrados de lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica, conforme o art. 129, §9º do Código Penal, restringindo-se a situações de violência dentro de casa.
[7] MARTINS, Fernanda; GOULART, Domenique; RODRIGUES, Carla (org.). Gênero, violência e tecnologias de resistência. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021.
[8] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024.
[9] O grupo inclui analfabetos, fundamental incompleto, fundamental completo e ensino médio incompleto.
[10] HIRATA, Helena. O trabalho de cuidado: comparando Brasil, França e Japão. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, v.13, n.24, p.53-64, 2016.

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