Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Quando lidamos com a violência contra pessoas negras, no recorte da segurança pública, ainda precisamos, mesmo frente às evidências que os dados nos trazem, indicar e problematizar a existência de um padrão recorrente de tratamento diferenciado, sob o risco de contribuirmos para a sua naturalização. E naturalizar que a violência letal esteja endereçada à população negra equivale a não reconhecer que há uma arquitetura estatal que sustenta essa dinâmica. Ou seja, nessa leitura, são tidas como inexistentes tanto a maior vulnerabilidade negra à violência quanto a responsabilidade do Estado Brasileiro nessa questão.
Neste sentido, o Atlas da Violência 2025 atualiza o cenário ao apresentar, por meio da análise das taxas de homicídios de pessoas negras e não negras entre os anos de 2013 e 2023, um retrato da persistente desigualdade racial na violência letal no Brasil. Embora os dados apontem para uma redução geral dos homicídios no país, essa tendência não se distribui de forma equânime entre os grupos de pessoas negras e não negras.
Observa-se que, além do número absoluto de homicídios entre não negros ser consistentemente menor, sua redução ao longo do período de onze anos analisado foi mais significativa do que entre negros. Tal descompasso revela, com ainda mais clareza, o padrão de tratamento diferenciado, que se acentua ao analisarmos o risco relativo de homicídio: em 2023, uma pessoa negra tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio do que uma pessoa não negra – aumento de 15,6% em relação a 2013. Ou seja, apesar dos avanços na diminuição geral dos homicídios, a desigualdade racial associada à violência letal não apenas persiste, como se intensifica.
Com relação ao contexto mais amplo em que esse cenário se insere, do ponto de vista das políticas públicas na esfera federal, analisando o período compreendido entre 2013 e 2023, o ano de 2013 assinala os dez anos da criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e 2023 foi o ano da criação do Ministério da Igualdade Racial (MIR). Nesse intervalo, não foram poucos os marcos normativos, políticos e jurídicos que trouxeram a agenda da igualdade racial para o centro dos debates.
Em 2014 foi sancionada a Lei nº 12.990, que previu 20% de cotas raciais nos concursos da Administração Pública Federal. Em 2017, no âmbito da ADC 41, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a integral constitucionalidade da Lei de Cotas Raciais nos Concursos Públicos. Em 2023, o crime de injúria racial passou a ser considerado como racismo (Lei nº 14.532/2023) e a Lei nº 10.639/2003 completou vinte anos de vigência, trazendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira na educação básica do Brasil. Foi também lançado o Programa Federal de Ações Afirmativas, instituído pelo Decreto 11.785, voltado a promover direitos e corrigir desigualdades.
Nesse sentido, os números que aqui trazemos desnudam as desigualdades e o racismo estrutural que têm atingido a população negra brasileira, traduzidos na violência letal. O crivo dos marcadores raciais evidencia que, mesmo com a agenda pública nacional mais permeável ao debate racial, permanece vívida uma zona do não ser, que recusa dignidade às pessoas negras. E quando o assunto são homicídios, a recusa fica evidente.
Exemplo disso se extrai do indicador Índice de Vulnerabilidade da Juventude Negra (IVJ-N) 2024, elaborado a partir do modelo conceitual do Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) 2017, desenvolvido pela UNESCO e pelo FBSP para medir a vulnerabilidade dos jovens brasileiros à violência. Mesmo considerando outras dimensões, para além do sistema de segurança pública e de justiça criminal, os dados mostram uma persistência: esferas de políticas públicas, envolvendo direitos sociais, ainda não conseguem proteger a juventude negra no mesmo patamar que a juventude branca. Ou seja, estamos lidando com um padrão de vulnerabilidade à violência suportado e dirigido aos jovens negros, o qual tem escapado do alcance da ação do Poder Público.
Aspectos básicos que precisam ser observados quando tratamos da garantia do direito à vida e dos direitos voltados à inclusão social foram tomados como dimensões componentes do IVJ-N 2024, a saber: (i) mortalidade entre os/as jovens, (ii) acesso à escola, (iii) emprego e renda e (iv) desigualdade socioeconômica. Toma-se aqui especificamente a escolaridade, que, conforme os achados empíricos no Plano Juventude Negra Viva, se apresenta como variável determinante nas taxas de mortalidade da população jovem no Brasil, sendo que, quanto maior o tempo de escolarização, menor a mortalidade por homicídios. O que se pôde observar, pelo cálculo do Risco Relativo de Morte Violenta de Jovens segundo escolaridade, é que, embora o acesso à escolarização previna a violência letal, esse fator isolado não dá conta de anular os efeitos estruturais do racismo.[1]
Voltando aos dados da violência letal, em 2023 foram registrados 35.213 homicídios de pessoas negras – pretas e pardas – no Brasil, pequena variação de -0,9% nos números absolutos em relação a 2022. O cenário de redução também se apresentou nas taxas de homicídios registrados por 100 mil habitantes negros. A taxa de homicídios de pessoas negras em 2023 foi de 28,9, com variação de -2,7% comparado com 2022 e -21,5% com 2013. Enquanto a taxa de homicídios de pessoas não negras por 100 mil habitantes foi de 10,6 em 2023, variando -1,9% com relação a 2022 e -32,1% com relação a 2013.
O Gráfico 6.1 apresenta a comparação das taxas de homicídios de negros e não negros registradas entre 2013 e 2023. É possível observar que, a partir de 2020, ambas as taxas demonstram redução, período em que a taxa de pessoas negras passa a apresentar uma curva mais convergente com a da taxa de pessoas não negras, ainda que mais elevada.

Nesse sentido, cabe afirmar que há um contexto de redução no número de homicídios de pessoas negras em nível nacional. No entanto, ao acrescentar à análise os homicídios de pessoas não negras – brancas, amarelas e indígenas –, pode-se observar que tanto o volume de homicídios de pessoas não negras é inferior, quanto sua redução ao longo do período é superior. Isso evidencia um contexto de desigualdade racial na violência letal, ponto destacado há muitas edições do Atlas da Violência.
As variações das taxas de homicídios por região também apresentaram preponderante redução no período 2013-2023, tanto de pessoas negras quanto de pessoas não negras, como pode ser observado nos gráficos 6.2 e 6.3. Dentre as taxas de homicídios de pessoas negras por 100 mil habitantes nos períodos analisados, o único momento em que foi registrado aumento foi de 2022 a 2023 na região Sudeste, com variação de 3,8%. Considerando o período de 2013 a 2023, a maior redução foi apresentada pelo Centro-Oeste (-46,2%), seguido da região Sudeste (-39,4%).

As maiores reduções da taxa de homicídios registrados de não negros por 100 mil habitantes, entre 2013 e 2023, também foram registradas pelas regiões Sudeste, com -44,7%, e Centro-Oeste, com 33,6%, como apresentado no Gráfico 6.3.
Similarmente ao que ocorre no nível nacional, ainda que o contexto de redução nas mortes esteja presente em ambos os grupos, a desigualdade racial na violência letal sobressai ao compararmos as taxas de homicídios de negros e não negros nas regiões brasileiras. O Gráfico 6.4 apresenta o comparativo das taxas de homicídio de negros e não negros em 2023. Nele, é possível observar que em todas as regiões a taxa de homicídios de negros é superior à de não negros. As maiores diferenças foram registradas na região Nordeste, que apresentou taxa de 41,7 homicídios de pessoas negras e taxa de 11,6 homicídios de não negros, a cada 100 mil habitantes de cada subgrupo populacional. Em seguida está a região Norte, que apresentou taxa de 35,7 homicídios de negros e 15,6 de não negros. A menor diferença foi registrada na região Sul, em que a taxa de homicídios de pessoas negras foi de 18,4 e a de pessoas não negras, 14,6.

Nessa direção, a análise da taxa de homicídios de pessoas negras por 100 mil habitantes, por UF, no ano de 2023, revela que, dentre as 16 UFs que apresentaram taxa superior à nacional, apenas duas – Rio de Janeiro (33,5) e Espírito Santo (34,6) – não estão localizadas nas regiões Norte ou Nordeste. Os estados do Amapá (70,2), Amazonas (41,4) e Rondônia (34,2) apresentaram as maiores taxas da região Norte. Da região Nordeste foram a Bahia (50,8), seguida de Pernambuco (48,0) e Alagoas (47,8). Com relação às UFs com taxas de homicídios de negros por 100 mil habitantes inferiores à nacional, as menores foram registradas em São Paulo (7,9), Santa Catarina (11,2) e Distrito Federal (13,7). Todos os estados da região Sul apresentaram taxa abaixo da nacional em 2023.
Para além da maior taxa de homicídios registrados de pessoas negras, o estado do Amapá merece destaque devido às suas variações ao longo do período. Em números absolutos, os homicídios de negros aumentaram 187,0% entre 2013 e 2023 e 47,7% entre 2022 e 2023. Com relação à taxa, os aumentos registrados foram de 134,8% entre 2013 e 2023 e 43,9% entre 2022 e 2023. Enquanto a violência letal contra pessoas negras apresenta esse cenário de expressivo aumento, a violência letal contra pessoas não negras no estado também registrou uma variação expressiva, mas de redução. Em números absolutos, a diminuição de homicídios de não negros foi de 77,8% de 2013 a 2023 e de 33,3% entre 2022 e 2023. As reduções na taxa de homicídios de pessoas não negras no estado foram de 81,6% de 2013 a 2023 e de 32,0% entre 2022 e 2023.
Ainda que o contexto de desigualdade racial na violência letal esteja presente em âmbito nacional, chama atenção a desigualdade acentuada no Amapá. Em 2023, ocorreram 508 homicídios de pessoas negras no estado e seis de pessoas não negras; as respectivas taxas foram de 70,2 e 3,4 homicídios por 100 mil habitantes. A elevada taxa de homicídios de pessoas negras no estado deve ser compreendida à luz de dinâmicas criminais complexas e intensificadas nos últimos anos. A disputa por controle territorial entre facções locais e o aumento nas mortes decorrentes de intervenção policial têm acirrado os conflitos letais na região (FBSP, 2024).
Outra forma de mensurar a desigualdade racial nas estatísticas de violência letal é a análise do risco relativo de vitimização por homicídio. Nesta, o risco relativo é dado pelo quociente das taxas de homicídios entre negros e não negros. Ao considerar as populações residentes dos respectivos grupos sociais, quando o indicador for igual a um significa que o risco de uma pessoa negra ser vítima de homicídio é igual ao de uma pessoa não negra. No Brasil, em 2023, o risco de uma pessoa negra ser vítima de homicídio foi 2,7 vezes maior do que o risco de uma pessoa não negra.
Nesta análise, o estado de Alagoas se destaca pela desigualdade nos registros de homicídios de negros e não negros. Alagoas registrou o maior risco relativo de vitimização letal de uma pessoa negra no país, com 47,8. Há muitas edições do Atlas da Violência o estado vem ocupando este lugar. O Amapá registrou o segundo maior risco relativo, com 20,6, seguido do Rio Grande do Norte, com 6,5. Em todos os estados uma pessoa negra sofre maior risco de ser vítima de um homicídio em relação ao de uma pessoa não negra.
A exceção à regra é Roraima, em que o risco relativo foi de 0,6. Na edição anterior deste Atlas, foi apontada uma possível justificativa para a discrepância observada no estado de Roraima em relação às demais unidades federativas, relacionada à sua composição populacional. A população indígena, classificada na categoria de não negros – que inclui brancos, amarelos e indígenas –, representa uma parcela significativa da população local. De acordo com o Censo de 2022, Roraima é o quinto estado com o maior número absoluto de residentes indígenas e apresenta a maior proporção desse grupo em relação ao total de habitantes, correspondendo a 15,29%.[2] Assim, essa característica demográfica pode influenciar diretamente o risco relativo da população não negra no estado, dada a situação de vulnerabilidade historicamente enfrentada por esse grupo.
A Tabela 6.5 apresenta os percentuais de variação do risco relativo ao longo de determinados períodos considerando o intervalo de tempo analisado. No Brasil, a distância, que pode ser entendida como desigualdade, entre o risco relativo de homicídios de negros e não negros entre 2013 e 2023 aumentou 15,6%, ainda que tenha apresentado uma leve redução entre 2022 e 2023 (-0,9%). É possível notar que alguns estados registraram aumentos significativos do risco relativo, como é o caso de Alagoas e do Amapá. Entre 2013 e 2023, no estado do Amapá, o risco relativo de uma pessoa negra ser vítima de homicídio em comparação com uma pessoa não negra aumentou 1.177,5%. Em Alagoas o aumento do risco foi de 793,2% de 2013 a 2023. Ambos os estados registraram variações superiores a 100% de 2022 a 2023. Outras UFs que apresentaram aumentos consideráveis foram: Paraná, Rio Grande do Norte, Rondônia e Tocantins.
Com relação à comparação do risco relativo de vitimização por homicídio entre negros e não negros entre os anos de 2013 e 2023, conforme já mencionado, os estados de Alagoas e Amapá se destacam pelo aumento expressivo nos valores observados. Em 2013 o risco relativo em Alagoas era de 5,4, passando para 47,8 em 2023. No Amapá era de 1,6 em 2013, passando para 20,6 em 2023. Por outro lado, as reduções no risco relativo em 2023, quando comparadas aos dados de 2013, foram mais significativas no Distrito Federal, Pernambuco e Paraíba, cujos riscos relativos registrados em 2013 foram, respectivamente, 7,6; 6,4; e 7,5. E em 2023, respectivamente, 2,3; 2,9; e 4,0.

As discrepâncias observadas nas taxas e no risco relativo de vitimização letal evidenciam que a população negra permanece submetida a um cenário de violência desproporcional. Os dados demonstram a permanência de uma estrutura racializada da violência, que se expressa de maneira diferenciada nos territórios e resiste mesmo em contextos de avanços legislativos e institucionais no campo das políticas públicas.
Assim, os dados reforçam a necessidade de reconhecer a atuação seletiva do Estado como parte constituinte de uma arquitetura da violência que naturaliza a vulnerabilidade de pessoas negras. A persistência da “zona do não ser”, conforme referida no início do texto, se manifesta no abandono da dignidade negra frente à violência letal.