Violência contra a população LGBTQIAPN+
O ano de 2022 encerrou o mandato de um governo federal marcado por violações a direitos humanos e pela reconfiguração de políticas públicas para essa população, em que ataques à população LGBTQIAPN+ constituíram tática de manutenção de popularidade e mobilização de massa no longo prazo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
Desde 2019, o Atlas da Violência publica análises sobre violência contra pessoas LGBTQIAPN+, tomando por base as notificações de violência interpessoal no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) que, a partir de 2014, passaram a conter os campos nome social, identidade de gênero e orientação sexual das pessoas atendidas em suas Fichas de Notificação de Violência (Santos et al., 2022).[1]
É fundamental, em primeiro lugar, esclarecer de que se tratam os dados. As informações aqui apresentadas dizem respeito aos registros de violência contra vítimas LGBTQIAPN+ por quaisquer que sejam as motivações (exceto violência autoprovocada), não devendo, portanto, ser confundidos com registros indicadores de LGBTfobia necessariamente. As categorias utilizadas pela Ficha de Notificação de Violência, que subsidiam esta análise, designam dissidentes de gênero e sexualidade de acordo com dois marcadores: identidade de gênero e orientação sexual (Santos et al., 2022).
A compilação e análise desses dados é importante na medida em que constitui avaliação de uma das poucas e ainda insuficientes fontes de dados referentes às condições de vida da população LGBTQIAPN+, em um país que segue se recusando a garantir cidadania efetiva por meio de políticas públicas robustas e garantidoras de direitos fundamentais a essas pessoas. No caso dos dados do Sinan aqui tratados, a avaliação possibilita uma perspectiva sobre o estado atual da intersecção entre direitos civis (à vida, à não discriminação e à liberdade) e direitos sociais (à saúde e à segurança pública).
As democracias estão vivendo período de intensa crise mundialmente, caracterizada pela ascensão da extrema direita, pela erosão dos espaços e discursos democráticos e pela consolidação de retrocessos no que diz respeito a direitos e liberdades conquistados por populações subalternizadas. O Brasil foi inserido neste contexto de transformações globais marcadas pela ascensão de um bloco político de extrema direita com a eleição de Jair Bolsonaro que, contraditoriamente, consolidou políticas, discursos e práticas antidemocráticos como constituintes naturalizados da normalidade democrática (Hunter; Power, 2019; Miguel, 2021). Nesse sentido, os últimos anos no país foram caracterizados pelo desmonte e reconfiguração da ação governamental, visando à redução, à diminuição ou à remoção de políticas públicas (Gomide; Silva; Leopoldi, 2023). Essas transformações impactaram todos os segmentos da população, mas especialmente aqueles tomados pela extrema direita como inimigos nacionais: pessoas negras, indígenas, povos tradicionais, mulheres e LGBTQIAPN+.
O Brasil tem uma trajetória bastante conservadora, autoritária, masculinista e LGBTfóbica, tendo cristalizado a noção de que LGBTQIAPN+ seriam resultados de processos de perversão moral, o que estigmatiza o segmento como desviante, contaminado, degenerado e doente (Quinalha, 2017; Mello; Avelar; Brito, 2014). Ao longo das inúmeras lutas intersectas por direitos sociais e civis, a concepção cisheteronormativa acerca da população LGBTQIAPN+ passou a ser confrontada por visões progressistas, capazes de reconhecer e advogar pela necessidade de garantir acesso à cidadania e a oportunidades e reconhecimento social a esse grupo, resultando em transformações importantes, ainda que insuficientes, nos discursos morais, sociais, biológicos, políticos e médicos (Bezerra et al., 2022, Jarrín, 2016).
Liderando contramovimentos (backlash)[2] desta trajetória histórica de lutas por cidadania, a extrema direita impõe um modelo único e compulsório de família cis-hetero-patriarcalista nuclear, opondo diretamente existência, cidadania e visibilidade de LGBTQIAPN+ à proteção da integridade de crianças e adolescentes, como se a diferença apresentasse uma ameaça. Trata-se de um modelo de política ancorado não sobre a negociação e a construção de consensos entre partes dissidentes, mas sobre a rejeição à alteridade e a eliminação dos dissidentes (Alonso, 2019; Solano, 2019; Afonso-Rocha, 2023).
Uma das formas mais evidentes dessa operação de backlash seria cristalizada na noção de “ideologia de gênero”, um termo amplamente utilizado por movimentos conservadores para acusar os movimentos (sociais e teóricos) interessados em pautar e reivindicar as diversidades de gênero de deturpar uma forma “natural” de expressão do sexo e da sexualidade – a cisheteronormatividade. A ideia de “ideologia de gênero” viria a ser mobilizada insistentemente já durante a campanha presidencial de 2018, ocupando espaço chave na estratégia política do governo do período referência aqui tratado, amplificando a violência política e simbólica contra LGBTQIAPN+ ao dar-lhe disseminação, institucionalidade e status de discurso oficial. Discursos moldam a percepção de realidade e, portanto, produzem práticas específicas. Os incrementos significativos nos números de violência contra LGBTQIAPN+ registrados pelo Sinan, que ficarão demonstrados a seguir, têm nessas dinâmicas perversas uma de suas explicações.
Os dados do Sinan apontam que, em 2022, 8.028 pessoas dissidentes sexuais e de gênero foram vítimas de violência no Brasil, um aumento de 39,4% em relação a 2021, quando foram registrados 5.759 casos. Analisando a série histórica desde 2014, nota-se que os casos cresceram ano a ano, à exceção de 2020, primeiro ano da pandemia de Covid-19, quando os serviços presenciais caíram consideravelmente. O salto entre 2021 e 2022, no entanto, é o segundo maior da série,[3] acendendo um alerta para o aumento da violência contra essa população.
Em termos de orientação sexual, 72,5% (5.826 pessoas) das vítimas eram homossexuais e 27,4% (2.202) eram bissexuais. A maior parte das vítimas são mulheres: 67,1%, quase o dobro do número de homens (32,7%). O perfil racial das pessoas LGBTQIAPN+ vítimas de violências é, em sua maioria (55,6%), de pessoas negras; outros 39,2% são brancos, 1,1% são amarelos e 0,7% são indígenas.
Dentre as pessoas homossexuais vítimas de violência, 63,7% concentram-se na faixa etária de 15 a 34 anos, sobretudo dos 20 aos 29 anos. Pessoas de 40 a 49 anos são 11,6% das vítimas, conforme apontado no Gráfico 7.2. As pessoas bissexuais vítimas de violência são mais jovens, com a maioria concentrada na faixa etária de 15 a 29 anos (65,2%). Quando comparadas às notificações de violência de pessoas heterossexuais, nota-se que a faixa etária com maior representação de pessoas LGBTQIAPN+ é aquela entre 15 e 29 anos (são 7% do total de notificações; a título de comparação, em pessoas acima de 70 anos, o percentual de homossexuais e bissexuais cai para 1%).
No que se refere à identidade de gênero, considerando travestis e homens e mulheres trans, foram 4.170 vítimas de violência em 2022, uma alta de 34,4% em relação a 2021, quando 3.103 pessoas trans e travestis foram vítimas de violência registrada pelo Sinan (Gráfico 7.3).
O aumento é bastante expressivo e, na ausência de dados oficiais confiáveis produzidos pela Segurança Pública no que diz respeito aos registros de violência contra LGBTQIAPN+ (FBSP, 2023), cabe comparar os dados aqui apresentados àqueles produzidos pela sociedade civil. Dados produzidos pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), através de metodologia empregando busca ativa por vítimas letais, registraram 131 pessoas trans e travestis mortas no Brasil em 2022. A cifra é 6% menor que a registrada pela Associação no ano anterior (Benevides, 2022 e 2023).
Se é verdade que o aumento dos registros do Sinan poderia ser explicado pelo espraiamento das redes de atendimento, poderia ser também atribuído a um aumento da violência e da vulnerabilidade contra essa população, ainda que não tenha resultado em aumento dos casos letais captados pela sociedade civil. O ano de 2022 encerrou o mandato de um governo federal marcado por violações a direitos humanos e pela reconfiguração de políticas públicas para essa população, em que ataques à população LGBTQIAPN+ constituíram tática de manutenção de popularidade e mobilização de massa no longo prazo, e instrumento de campanha política no curto prazo (Atlas da Violência, 2023 e FBSP, 2023).
Em 2022 as mulheres trans foram 66,3% do total de pessoas trans e travestis vítimas de violência. Homens trans representaram 19,5%, enquanto travestis foram 14,3%. No Gráfico 7.4 fizemos o cruzamento entre a identidade de gênero e a raça das vítimas de violência. Pessoas negras são as mais atingidas em todas as identidades de gênero, mas esse percentual é ligeiramente maior entre travestis: 61,8% das travestis vítimas de violência eram negras, demonstrando quão fundamental é que políticas de prevenção à violência contra LGBTQIAPN+ sejam dotadas de focalização, formuladas e implementadas sob uma perspectiva interseccional, capazes de apreender e proteger, com base nas especificidades de cada subgrupo, a diversidade interna da população LGBTQIAPN+.
Em termos do tipo de violência sofrida, 3.159 pessoas trans e travestis foram vítimas de violência física em 2022. Em 2021 foram 2.391, o que significa um aumento de 32,1%. Foram registradas 1.302 violências psicológicas contra pessoas trans e travestis em 2022 e 1.064 em 2021, apresentando crescimento de 22,3%. Também foram registradas 175 violências de tortura em 2022, um recrudescimento de 41,1% nesse tipo de violência extrema em relação a 2021.
Homens são a maioria dos autores dessas violências: em 70,9% dos casos o agressor era do gênero masculino, contra 20,2% de autoria de mulheres, demonstrando que o gênero vetoriza as interações sociais resultantes em violência contra pessoas LGBTQIAPN+ e que, portanto, trabalhos de prevenção devem estar também voltados à abolição da cultura de fomento à opressão cisheteropatriarcalista que mobiliza os autores de violência. Esse enfrentamento depende da produção de um tecido social acolhedor à diversidade e às dissidências sexuais e de gênero, pela via de uma educação e conscientização que abordem temas ainda lidos como polêmicos e “ideológicos” quando, na verdade, dizem respeito à vida e aos direitos de existência das diferenças.