Múltiplas Vozes

Velhas falácias, falsas dicotomias: as armas de fogo e as Guardas Municipais

Guarda Municipal não é polícia estadual ou federal, ou sniper para tiros de longa distância; logo, não pode fazer uso de fuzis de assalto, como quer o município de São Paulo. O enfrentamento ao crime organizado e a facções criminais com maior poder de fogo não é competência ou atribuição destes profissionais

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Eduardo Pazinato

Advogado, Professor Universitário, Especialista em Segurança Pública Cidadã e Compliance

Todo profissional precisa dispor dos meios adequados para o correto exercício da sua profissão. Por “meios adequados” entendem-se todos aqueles equipamentos necessários para o atendimento dos fins pretendidos, resguardando o profissional e seu entorno. Como consequência lógica, são os fins que definirão os meios, e não o contrário.

A título de exemplo, as dimensões e a natureza da superfície a ser pintada indicarão o tamanho e a qualidade do pincel ou do melhor instrumento a ser empregado pelo pintor. Dito de outro modo, não é a ferramenta que modulará o fazer de um bom profissional. Diversamente, caberá a um bom profissional, nos marcos das suas atribuições, capacidades técnicas e expertises funcionais, indicar os instrumentos apropriados para a prestação desse ou daquele serviço. Obviamente, não se espera de um pintor, ilustrativamente, que este venha também a se imiscuir em seara alheia, incidindo na parte elétrica ou hidráulica de determinado estabelecimento.

Ao transferirmos essa analogia às Guardas Municipais, seja pelo seu caráter público no uso da força, seja pelas características potencialmente lesivas dos Equipamentos de Proteção Individual – e Coletiva (EPI’s) de que dispõem, sobretudo a arma de fogo, será necessário, primeiro, explicitar o mandato desse vital órgão de segurança pública municipal, suas competências constitucionais e atribuições legais que delimitam a extensão e os limites da sua atuação na complexa área da segurança pública, justiça criminal e proteção de direitos. Nesse particular, a última década trouxe à baila duas leis federais – Leis nos 13.022/2014 e 13.675/2018, que regulamentam, respectivamente, os §§ 8º e 7º da Constituição Federal, e estruturam o lócus das Guardas Municipais no campo da segurança pública.

Isso porque o referido Estatuto Geral das Guardas Municipais formalizou o reconhecimento do Estado brasileiro das identidades socioprofissionais dessa carreira pública, potencializando a superação de antigas ambiguidades normativas que permearam, historicamente, o lugar das Guardas Municipais no campo da segurança. A Lei nº 13.022/2014, que deveria integrar os EPI’s de todas as Guardas Municipais no país, oferece balizas para regular, normativa e institucionalmente, o funcionamento da principal agência municipal de segurança, sistematizando as inúmeras atribuições desempenhadas por essa corporação, exemplificando em seu art. 5º, pelo menos, dezoito atividades e ações passíveis de serem empreendidas pelas Guardas junto ao Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Note-se, ainda, que essa legislação marca, formalmente, a passagem de uma Guarda Municipal de caráter eminentemente patrimonial, adstrita à proteção do patrimônio físico e material dos próprios públicos do Município, para uma Guarda Comunitária, talhada para intervenções mais dialógicas e preventivas de maior proximidade e interação com a população, na defesa da vida.

A par das especificidades locais e regionais dos mais de 125.000 Guardas Municipais existentes no país, é possível afirmar que esses atores se articulam em torno de múltiplas e variadas estratégias de policiamento orientadas à resolução de problemas. Colaboram com a fiscalização e regulação do espaço urbano, em alguns, inclusive, do trânsito; interagem com novas tecnologias de controle social, a exemplo dos sistemas de videomonitoramento; zelam pela convivência nas cidades, garantindo o poder de polícia administrativo de agências municipais afins (fiscalização do meio ambiente, vigilância sanitária, etc.); medeiam e restauram conflitos, sobretudo interpessoais, que emergem nas escolas, entre outros. As Guardas Municipais têm as condições fáticas de se tornaram uma polícia municipal do século XXI, moderna, profissional e próxima das pessoas e comunidades mais vulneráveis e expostas às violências, sob o signo da prevenção e da promoção dos direitos em nível local. Para tanto, deverá fazer uso da força obedecendo à melhor doutrina, nacional e internacional, e observando os princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência.

Desse modo, sem que se esteja olvidando um debate mais amplo, e sabidamente hercúleo (e imprevisível nesses tempos de ódio e fake news), de uma necessária reforma constitucional, as Guardas Municipais, sob a égide das referidas normas federais, constituem um órgão de segurança pública, de fato e de direito. Como uma polícia municipal, por certo, devem fazer uso de todos os EPI’s afetos ao uso legítimo e diferenciado da força, o que inclui, ressalvados os mecanismos de controle social e de formação requeridos pela legislação, a arma de fogo. O que não quer dizer autorização genérica para que as Guardas Municipais possam portar e utilizar todo tipo de armamento letal, como os fuzis, objeto de uma famigerada aquisição pela Guarda Municipal de São Paulo.

Esse entendimento resta corroborado por uma análise sistemática da denominada “Lei do SUSP” (Lei nº 13.675/2018), na medida que a arquitetura institucional esboçada nessa norma jurídica dialoga com as competências e atribuições de inúmeras forças policiais, entre as quais as Guardas Municipais. Essas diferentes instituições não podem se sobrepor institucional e profissionalmente. É vedado, portanto, pela inteligência aduzida da Lei do SUSP, que as Guardas Municipais venham a se mimetizar com o mandato das demais forças policiais – as Polícias Militar e Civil, em nível estadual, e as Polícias Federal e Rodoviária Federal, no âmbito federal, e vice-versa. Inobstante, todas elas, em uma governança integrada, concorrem para o efetivo estabelecimento do SUSP – projeto ainda inconcluso, diga-se de passagem, a quem incumbe, com base em evidências, preconizando metas claras e indicadores consistentes de monitoramento e avaliação, proteger e preservar vidas humanas.

Na atual arquitetura normativa e institucional da segurança pública do país, a existência de um marco regulatório para disciplinar a atuação das Guardas Municipais, agregando às suas funções a de “proteção municipal preventiva”, por um lado, e a Lei do SUSP, por outro, chancelaram um consenso mínimo em relação ao papel desempenhado por essa instituição. Nele não cabe, por evidente desvio de finalidade, a utilização de equipamentos impróprios para o exercício do seu mister, como o fuzil. Guarda Municipal não é sniper para utilizar um fuzil de precisão, favorecendo tiros de longas distâncias em “alvos prioritários”. Guarda Municipal não é polícia estadual ou federal, logo não pode fazer uso de fuzis de assalto, como quer o Município de São Paulo, porque o enfrentamento ao crime organizado, a facções criminais com maior poder de fogo, não é competência ou atribuição das Guardas Municipais.

A defesa desse tipo de armamento para as Guardas Municipais está afinada com a gestão por espasmos, (retro)alimentando-se de um senso comum punitivo focado em velhas falácias – como as que defendem a flexibilização irresponsável do Estatuto do Desarmamento para “proteger o cidadão de bem”, e falsas dicotomias – como a que antagonizou, ao longo do tempo, as polícias da cidadania e vice-versa. O medo e a insegurança são os piores conselheiros da segurança pública, pois irracionais e reativos.

Essa proposta, a da compra de fuzis para supostamente proteger o profissional da Guarda, acaba unicamente, como demonstra um sem-número de pesquisas empíricas, por expô-lo. Embora dialogue com a opinião pública pela apropriação econômica e eleitoral da segurança, não está preocupada com as Guardas Municipais e sua singularidade preventiva no âmbito do SUSP. Não se enganem, colegas Guardas Municipais, esse tipo de discurso apenas camufla as reais (e legítimas) premências da corporação por melhores condições de trabalho e de salário, inclusive em termos da natureza policial de suas atividades para a contagem de serviço e demais equiparações previdenciárias.

Voltando à metáfora, o mandato institucional das Guardas Municipais, referenciado jurídica e normativamente, é suficientemente prolífico e desafiador para que bons profissionais venham a se intrometer em área policial alheia e vice-versa. A compra de fuzis, pela maior Guarda Municipal do Brasil, é sinal trocado para o fortalecimento institucional e a legitimação social da instituição.

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