Tremembé, prisões dos golpistas de 8 de janeiro e as contradições do sistema prisional brasileiro
O debate oportuno deveria se ater a questões estruturais do sistema prisional brasileiro – como a superlotação e as condições desumanas – em vez de desviar para regalias destinadas à cúpula dos golpistas do 8 de janeiro ou para especulações sobre a próxima temporada de uma série no streaming
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais. Policial civil no Distrito Federal. Associado sênior do FBSP
A série Tremembé, que dramatiza a vida carcerária de figuras afamadas, como Suzane von Richthofen, desperta a curiosidade do público pelo sistema prisional. Paralelamente, outro drama tem atraído a atenção aos presídios brasileiros: as detenções de indivíduos envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, sobretudo pela inclusão de nomes como o ex-presidente Jair Bolsonaro e os generais Alberto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Esses episódios, embora distintos, revelam um paradoxo: a prisão pode ser um espetáculo, mas, em essência, é uma tragédia social.
Por isso, nem a ficção de Tremembé nem o aprisionamento dos envolvidos no 8 de janeiro podem representar a miséria estrutural que marca as prisões brasileiras. No entanto, esses casos simbolizam a seletividade e as contradições do sistema penitenciário. Enquanto algumas personalidades possuem garantias mínimas de dignidade, a imensa maioria da população carcerária segue padecendo sob violência, sofrimento e humilhação. Essa disparidade é sutil e perversa. Veja: de um lado, a possibilidade de prisão domiciliar humanitária para o general Heleno foi avaliada de forma célere; de outro, dados do Sistema Nacional de Informações Penais (Siderem) de 2024 apontam para um colapso sanitário, com quase 13 mil pessoas presas portadoras de HIV, mais de 10 mil com sífilis e quase 9 mil com tuberculose [i].
É notável que, por conta das condenações dos envolvidos na trama golpista de 8 de janeiro, antigos porta-vozes do punitivismo penal e defensores da crueldade do cárcere passaram a sustentar que as prisões brasileiras são desumanas. Agora, conclamam por redução de penas, anistia e medidas humanitárias de desencarceramento. Ou seja, os mesmos que antes bradavam por mais celas e menos direitos agora posam de defensores de direitos humanos a fim de beneficiar certas personalidades.
Se outrora já teceram críticas de que os aeroportos brasileiros estavam parecendo rodoviárias, por estarem sendo frequentados por pobres, agora demonstram indignação diante da possibilidade de que determinados “cidadãos de bem” sejam submetidos à tragédia carcerária brasileira. A revolta decorre do fato de que indivíduos qualificados como mais cidadãos do que outros, ainda que de forma mitigada e com tratamento diferenciado, venham a experimentar os efeitos do cárcere. A lógica subjacente é que um específico ex-presidente da República, militares de alta patente e indivíduos “de bem” jamais deveriam ser encaminhados à vala comum do sistema prisional.
Produções como a série Tremembé e o alarido em torno dos condenados de 8 de janeiro podem contribuir para suscitar debates sobre a precariedade do sistema prisional brasileiro. Contudo, também escancaram que o sofrimento no contexto do cárcere só importa quando atinge certas figuras. Enquanto no Congresso Nacional são apressadamente articuladas propostas voltadas à redução de penas e à anistia para golpistas, a realidade desumana do sistema prisional permanece inalterada para seus mais de 900 mil presos – um contingente majoritariamente composto por jovens, negros, de baixa escolaridade e pobres [ii].
Tremembé e as narrativas produzidas pelos envolvidos no caos de 8 de janeiro não versam sobre prisões brasileiras, mas a respeito de privilégios. Particularmente, embora os condenados ilustres do 8 de janeiro e as centenas de milhares de pessoas privadas de liberdade no Brasil pertençam ao mesmo sistema, eles estão em mundos distintos. Aqui a realidade não se confunde com a ficção. Com efeito, um grupo recebe holofotes, visitas e atendimento especializado; o restante permanece ignorado pela naturalização do sofrimento daqueles rotulados como bandidos natos.
Na sede de Brasília da Polícia Federal, onde se encontra preso Jair Bolsonaro, equipes de imprensa, repórteres, curiosos e apoiadores fazem plantão, e qualquer soluço dele é noticiado com gravidade. Por outro lado, sem repercussão na mídia, dados oficiais do Siderem indicam que uma em cada cem pessoas presas está afetada por HIV, sífilis ou tuberculose.
Se o interesse pelo que ocorre atrás das grades cresceu com a série Tremembé e, principalmente, com as prisões dos condenados de 8 de janeiro, que esses eventos sirvam como um imperativo para questionar o encarceramento em massa e a precarização das prisões brasileiras. Desse modo, o objetivo não é estabelecer privilégios para indivíduos que devem responder por crimes cometidos, tampouco regozijar-se com a ida de golpistas para o submundo do cárcere. O que se busca é, fundamentalmente, promover um avanço em direção a condições mínimas de dignidade para qualquer pessoa privada de liberdade.
De todo modo, as discussões na seara política sobre redução de pena e anistia para figuras notórias revelam que a preocupação central não reside nos direitos fundamentais da população carcerária. Na verdade, tudo isso é motivado pelo incômodo seletivo diante de quem é alcançado pelas engrenagens do cárcere. Portanto, neste momento, o debate oportuno deveria mirar questões estruturais do sistema prisional brasileiro – como a superlotação e as condições desumanas – em vez de se desviar para regalias destinadas à cúpula dos golpistas de 8 de janeiro ou para especulações sobre a próxima temporada de Tremembé.

