Múltiplas Vozes 23/08/2023

Transparência Sob Ameaça: o esvaziamento do Programa de Câmeras Corporais da Polícia Militar de São Paulo

A crescente obstrução do programa de câmeras corporais na Polícia Militar de São Paulo leva a crer que o programa tem sido esvaziado não em razão de suas eventuais falhas, mas justamente em razão de seu êxito. A promessa inaugural de incremento da transparência e da responsabilização está sendo minada por ações que promovem a opacidade e fomentam a ilegalidade

Compartilhe

Ariadne Natal

Doutora em sociologia, pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF)

A inserção de câmeras corporais no aparato das forças de segurança paulistas surgiu como uma perspicaz estratégia de fomento à transparência, confiança, proteção e responsabilização, prometendo mitigar excessos e melhorar a relação entre a polícia e a comunidade.

Embora seu emprego seja recente, o programa “Olho Vivo” da Polícia Militar de São Paulo tem sido frequentemente citado por diversas análises como um exemplar caso de êxito de política pública no âmbito da segurança, delineando-se como um passo significativo rumo a uma possível reorientação na maneira de atuação das forças policiais militares no estado, direcionando-se a uma abordagem mais transparente e congruente. Por intermédio da gravação das interações entre a polícia e os cidadãos, as câmeras podem oferecer uma visão imparcial dos eventos, contribuindo para evitar abusos de poder e garantir a prestação de contas por comportamentos inapropriados. Além disso, conferem maior segurança e simplificam a coleta de evidências entre os agentes.

As análises dos anos iniciais de implantação evidenciam consideráveis declínios nas taxas de letalidade policial (mortes decorrentes de ações da polícia militar) e vitimização policial (mortes de policiais militares em serviço) nos batalhões que adotaram as câmeras. Outrossim, mesmo nas unidades que ainda não incorporaram a nova tecnologia, verificou-se uma tendência de diminuição da letalidade, refletindo o impacto da mensagem transmitida pelo programa e por outras ações concomitantes acerca de um redirecionamento das ações policiais. A orientação do comando é um componente essencial do programa e vai além de um mero dispositivo tecnológico de monitoramento, pois carrega consigo uma enérgica e inequívoca mensagem de expectativa de retidão das condutas nas atividades operacionais.

No entanto, desde o início deste ano, o programa se viu ameaçado e suas premissas originais enfrentam considerável risco de subversão por meio de uma abordagem política que questiona suas realizações. Desde as eleições de 2022, o então candidato a governador, Tarcísio de Freitas, tem deixado claro que o programa de câmeras corporais está em sua mira. Durante a campanha, ele chegou a prometer o fim das câmeras corporais, mas retrocedeu diante da percepção de que tal postura poderia prejudicar suas aspirações eleitorais.

Não obstante, após sua eleição, Freitas implementou medidas que podem minar a efetividade e o propósito do programa, levantando questões cruciais sobre seu compromisso com a iniciativa. Desde seu ingresso no cargo, Freitas estagnou a expansão do programa, deixando de adquirir novas câmeras conforme inicialmente planejado. Além disso, promoveu uma redução do orçamento do projeto em aproximadamente 15%, direcionando recursos para atividades ostensivas da Polícia Militar. E, ainda, fez uma redistribuição das câmeras para batalhões com menores índices de letalidade policial, como aqueles responsáveis pelo policiamento de trânsito.

Ademais, o exemplo mais paradigmático do esvaziamento do programa foi manifesto no trágico episódio da Operação Escudo, ocorrida no Guarujá após a morte de um policial militar e que já resultou em 20 civis mortos por intervenções policiais. As imagens de câmeras corporais, que deveriam constituir um componente vital para corroborar a narrativa policial da legalidade das ações, praticamente inexistem.

Sob a justificativa escassez de equipamentos e falhas técnicas, apenas seis registros de ocorrências foram entregues ao Ministério Público, dos quais apenas três efetivamente capturaram imagens relacionadas às mortes. É alarmante que, em uma operação policial planejada e envolvendo batalhões policiais especiais (que foram priorizados na implementação das câmeras corporais), a documentação em vídeo seja tão restrita. A ausência de imagens produz um vácuo de informações essenciais para elucidar as circunstâncias daquelas mortes. Esse cenário demonstra nitidamente como o compromisso com a transparência está sendo comprometido em prol de uma diretriz política de esvaziamento e deterioração, não apenas do programa em si, mas também da mensagem intrínseca de que as ações policiais e o uso da força devem respeitar diretrizes e limites legais.

A estratégia política de enfraquecimento do programa de câmeras corporais acarreta consequências sérias. Corre-se o risco de minar a confiança da sociedade nas instituições incumbidas de sua proteção, ao mesmo tempo em que alimenta a percepção de ocultação de informações. Isso não apenas deteriora a relação entre a polícia e a comunidade, mas também erode a confiança nas instituições democráticas em geral. Ademais, essa abordagem potencialmente perpetua abusos de poder e práticas inadequadas, culminando em um ambiente propício à impunidade.

Em última análise, a crescente obstrução do programa de câmeras corporais na Polícia Militar de São Paulo leva a crer que o programa tem sido esvaziado não em razão de suas eventuais falhas, mas justamente em razão de seu êxito. A promessa inaugural de incremento da transparência e da responsabilização está sendo minada por ações que promovem a opacidade e fomentam a ilegalidade. Diante das repercussões sociais e éticas desse declínio, é imperativo que a sociedade não aceite tal retrocesso e reivindique uma abordagem mais responsável, enaltecendo a verdade, a justiça e a confiança nas instituições cujo papel é servir e proteger.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES