Suspeição e abordagem policial: regulamentação e profissionalização
Decisão do STJ que torna ilícitas provas obtidas em abordagens policiais com alegação vaga contextualiza práticas que estão institucionalizadas no Estado de Direito e fomenta a construção de outras soluções racionais, com múltiplos atores, aumentando a profissionalização do campo
Gilvan Gomes da Silva
Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Recentemente uma decisão do Superior Tribunal de Justiça fomentou debates na segurança pública sobre “o fazer policial”. O resultado do colegiado seguiu o voto do Ministro relator sobre abordagem policial com alegação vaga sobre atitude suspeita e, como consequência, a ilicitude da prova obtida. O Ministro do STJ pondera sobre o art. 244 do CPP; sobre a importância do uso de câmeras pelos agentes de segurança; sobre a efetividade das abordagens para fins estatísticos de obtenção de provas flagrantes, sendo 1% das abordagens; os filtros racializadores presentes nas abordagens policiais; e, entre outros pontos, que a legislação vigente “não autoriza buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo” (pag. 10). O relatório está fundamentado na legislação vigente e em pesquisas acadêmicas sobre perfil da suspeição e consequências das abordagens e conclui que abordagens sem uma fundamentação de suspeição objetiva são ilegais.
A repercussão foi imediata. Apenas para exemplificar, há canais na internet de agentes de segurança pública que participam do processo de formação profissional que debateram a decisão. Um deles é de um guarda municipal que fez uma live intitulada STJ: Abordagem Policial e o Futuro da Segurança Pública. A fala inicial do apresentador dita a interpretação que teve sobre a decisão do STJ: favorece a criminalidade e pune os operadores da segurança pública (aos 6’ e aos 15’). Outro vídeo, intitulado STJ proíbe Policial de fazer abordagem, apresenta a decisão citando exemplos das ações que não podem mais para constituir a abordagem e a busca pessoal. Interessante ressaltar o questionamento proposto pelo palestrante: “Cotias, eu vou ficar na viatura fazendo o quê?” (16’). Segundo sua interpretação, as PMs, as GCM e a PRF serão as instituições mais afetadas pela decisão no tocante à interferência sobre o trabalho, diminuindo as ocorrências com desfecho de flagrante de delito.
Além dos debates de como agir, há contribuições reflexivas como a apresentada recentemente no Fonte Segura, que destaca que a decisão judicial teve repercussão no meio jurídico e policial por afetar a discricionariedade. Nesse sentido, seria uma diminuição do poder discricionário, pois ao exigir elencar objetivamente a fundamentação da abordagem, exige que o poder da tomada de decisão baseado nas leis, no treinamento prático, na experiência prévia que orienta o trabalho policial, seja objetivado, excluindo o contexto interpretado pelos agentes de segurança pública. Todavia, põe em relevo que a decisão judicial reconhece as necessidades individuais e institucionais na orientação da atividade policial e a repercussão do trabalho policial reflexivo na sociedade em geral.
Como contribuição ao debate, inicialmente acredito que essas regulamentações externas das ações de controle das atividades policiais se dão por ser um campo de atuação profissional em construção na esfera política e na perspectiva técnico-profissional, tanto de objeto de atuação, da consolidação do conhecimento científico próprio, dos recursos necessários e, principalmente, dos limites das intersecções com outras profissões e áreas do conhecimento.
Outro ponto a ser considerado é que as intervenções/regulamentações da/na atuação policial estão seguindo um percurso lógico, “buscando” a cientificidade profissional e construindo elementos objetivos, tanto na atuação individual quanto no planejamento institucional. Portanto, a busca da objetividade neste ponto específico e das metas na ação do STF para limitar operações policiais no Rio de Janeiro torna as ações racionais, com objetivos e métodos fundamentados pela técnica e pelas normas de um Estado de direito.
Neste ponto, também reorganiza o próprio campo da segurança pública. A pergunta na live sobre o que os policiais ostensivos devem fazer daqui em diante é própria da atual política e pertinente porque a solução institucionalizada pelo Estado é de combate ao criminoso, e não de diminuição da criminalidade. Ao “reorganizar” o sentido da abordagem, há a necessidade de “reorganizar” a política de segurança que outrora estava centrada em tal recurso. Se antes a abordagem servia para todos os crimes, sem a abordagem devem-se compreender as diversas dinâmicas dos diversos crimes, analisando causa, recursos, entre outros. E a lógica preventiva desloca-se para o tráfico de entorpecentes e de armas, por exemplo, ao invés de apreender “na rua”, prestes a serem usados.
Portanto, a discricionariedade apenas foi alterada porque a atividade policial não se restringe às abordagens cotidianamente, pois a atuação policial intervém na garantia do direito ambiental, da criança, do idoso, da mulher, da comunidade LGBTQIA+, no fluxo do trânsito das pessoas, na preservação da vida e patrimonial, entre vários outros espaços de conflito comuns das relações cidadãs às atividades complexas de alto risco, estando presente o poder discricionário próprio da profissão, pois já está consolidado um arcabouço técnico de soluções que auxilia a tomada de decisão.
Por conseguinte, a decisão judicial não diminui o poder discricionário e não paralisa a ação policial. O estranhamento e inquietação dos agentes de segurança são justificáveis apenas porque a política de segurança é centrada no indivíduo e não nas causas da criminalidade e métodos utilizados. Assim, a decisão contextualiza práticas que estão institucionalizadas no Estado de Direito e fomenta a construção de outras soluções racionais, com múltiplos atores, aumentando a profissionalização do campo.