Juliana Lemes da Cruz
Doutora em Política Social pela UFF, Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais
Seria mais uma manhã de serviço comum em uma cidade do interior, não fosse pelo abafado estampido de arma de fogo ouvido da direção oposta ao estande de tiro da Unidade policial. O pessoal da administração já estava na ativa, a bandeira nacional hasteada, como de costume, e os policiais em formação (alunos), no pátio interno, ansiosos para realizar o teste de condução de viatura. Seria mais uma manhã comum, não fosse pela decisão, certamente desesperada, de uma jovem mãe e esposa, de pouco mais de 30 anos de idade, que, em vez de sair para o seu turno de serviço policial, decidiu dar fim à própria vida. Como mensurar o sofrimento de alguém que se viu na necessidade de lançar mão de uma medida tão extrema para dar fim ao que já não dava conta de suportar?
Seria um mistério se o ocorrido em maio de 2024 fosse caso isolado e não tivéssemos noção dos impactos do adoecimento mental para profissionais da segurança pública no Brasil. O Anuário 2023 mostrou evidências de que, no ano de 2022, o suicídio foi a segunda maior causa de mortes de policiais civis e/ou militares, superando as mortes em confronto em serviço e ficando atrás apenas das mortes provocadas por terceiros durante a folga policial. Apesar disso, o acompanhamento especializado com foco na saúde mental, no âmbito das instituições de segurança pública, permanece um tabu.
Vale lembrar que não se trata de trabalhadores públicos comuns. Essa categoria profissional difere dos demais servidores públicos por contarem com a associação de dois elementos que se mostram determinantes. Por um lado, a natureza da atuação operacional, o que gera tensão pela mediação diária de questões sociais complexas que desaguam na segurança pública, e que, não raro, envolvem aflição, desespero e raiva das pessoas envolvidas. Situação que exige do profissional estado prolongado de alerta, além de precisão física e mental para dirimir conflitos. Por outro lado, os profissionais da segurança pública, em especial os policiais, têm a arma de fogo como principal instrumento de trabalho. Uma coisa é a pessoa reconhecer que está instável psicologicamente e não ter uma arma de fogo por perto. Outra coisa é ela não estar bem e ter como recurso fundamental, durante o exercício do seu trabalho, uma arma de fogo.
Para fazer frente a essa condição, os serviços de psicologia das instituições assumem a função de identificar e dar encaminhamento aos casos de profissionais que apresentem alguma pista de que precisam de acompanhamento qualificado. Dentre as medidas capazes de evitar o agravamento ou o adoecimento mental está a combinação dos serviços médico e psicológico com o serviço de assistência social, uma vez que, por meio da leitura apurada da situação particular e/ou coletiva de determinado grupo, alguns casos podem ser conhecidos em momento anterior ao adoecimento do profissional. Isso porque o conjunto de fatores que envolvem a sociabilidade oferece alternativas para que questões da vida cotidiana, inicialmente incômodas, possam ser trabalhadas para que não influenciem outras áreas, garantindo assim especial olhar sobre a qualidade de vida dos profissionais da segurança pública. No entanto, a combinação desses serviços segue negligenciada nas estruturas policiais, especialmente nas mais tradicionais.
O suicídio policial constitui o desfecho da situação de sofrimento mental de um indivíduo, o reflexo ou o resultado de tensionamentos de ordem laboral que afetam não apenas a individualidade em si, mas o coletivo da categoria. Nessa direção, o presente cenário anuncia a urgência de ações combinadas que deem conta de chegar aos trabalhadores da ponta das instituições de forma útil e segura. Aos moldes de um robusto Plano Nacional de Direitos Humanos para Profissionais da Segurança Pública, como o recém-divulgado pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, será fundamental que se torne um instrumento para além do papel, e que seja abraçado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública como condição à sua exequibilidade. Sem o necessário diálogo, sem dúvidas, estará destinado à gaveta.
Assim, parece urgente a instituição de formas governamentais de resposta ao adoecimento mental da categoria. Como alternativas possíveis, a construção de estratégias sérias de pactuação federativa para o fortalecimento do Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP (Lei nº 13.675/18), associadas à sensibilização dos gestores para tomada de consciência sobre a situação, uma vez que, em regra, atuam deslocados do universo de riscos, conflitos e confrontos típicos do cotidiano policial de base.
Nesse rumo, embora impactante, a forma mais comum de os líderes sentirem a temperatura das suas instituições é analisando a recorrência das mortes autoprovocadas dos policiais como claros pedidos de socorro e, certamente, recados individuais de que o coletivo não vai bem. Afinal, para ver e cuidar devidamente daqueles a quem deve servir, o policial também precisa ser visto e cuidado. O que envolve boas condições de trabalho, previsibilidade de descanso e, obviamente, dignidade salarial. Como ocupação internacionalmente reconhecida como de alto risco para suicídio, importa lembrar que um policial mentalmente adoecido dificilmente será capaz de cumprir sua missão de garantir a segurança de terceiros, tampouco de si próprio.