Múltiplas Vozes 14/06/2023

Sobre reincidências e reentradas no sistema prisional

A despeito de seu interminável rosário de deficiências, não é correto decretar a falência da prisão como pena. O que está falido é o modelo predominante de gestão amadora das prisões brasileiras

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Luis Flavio Sapori

Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ, 2006). Foi Secretário-Adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais no período de janeiro/2003 a junho/2007. Coordenou o Instituto Minas Pela Paz no biênio 2010-2011. Atualmente é professor do curso de Ciências Sociais da PUC Minas e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública

O sistema prisional pode ser considerado a “Geni” do aparato estatal da segurança pública na sociedade brasileira. Suas mazelas são constantemente ressaltadas, sendo recorrente afirmar que a “prisão no Brasil está falida”. Os indicadores utilizados para corroborar tal sentença são variados, incorporando os níveis de superlotação, os déficits das assistências aos presos previstas na Lei de Execução Penal, a violência crônica, a elevada reincidência. Tenho destacado há algum tempo que, a despeito desse interminável rosário de deficiências, não é correto decretar a falência da prisão como pena. Na verdade, o que está falido é o modelo predominante de gestão amadora das prisões brasileiras. Escassez endêmica de recursos materiais e humanos, precariedade dos protocolos técnicos de atuação, tecnologias de vigilância defasadas e investimentos pífios na abertura de vagas conformam um padrão de gestão destinado ao fracasso. A profecia se torna autocumprida. Quanto mais mal gerido é o sistema prisional, mais se reafirma sua falência.

Continua recorrente afirmar em discursos políticos, em salas de aula e em palestras acadêmicas que a reincidência criminal no Brasil supera 80%. Essa seria a prova definitiva de que a prisão no país não tem mais jeito. Entretanto, nunca é citada a fonte de dado tão assustador. Trata-se de narrativa – expressão da moda –  que está incrustada no senso comum da nação. Na verdade, estamos diante de verdadeira “fake news”. Não existe pesquisa realizada no Brasil que evidencie tal magnitude da reincidência criminal. Os poucos estudos a respeito, a maioria em âmbito regional, encontraram patamares em torno de 50%.

Eis um fenômeno a merecer maior atenção das autoridades públicas do setor, bem como da expertise acadêmica. Estudar a reincidência criminal não se resume a quantificar a proporção dos egressos do sistema prisional que voltaram a cometer crimes após ou durante o cumprimento da pena. Exige também a identificação dos fatores psicossociais que afetam a probabilidade de ocorrência da reincidência. Municiada de tais dados, a gestão técnica e profissionalizada do sistema prisional poderia aperfeiçoar e muito a aplicação mais individualizada da pena. E, principalmente, conseguiria formular e implementar projetos de reinserção social do egresso com maior efetividade. Seria adequado que os estudos de reincidência criminal envolvessem a parceria dos órgãos públicos, nos âmbitos estadual e federal, com as universidades.

A institucionalização desse indicador como ferramenta da gestão prisional deve ser incorporada à política nacional de segurança pública. Para tanto, precisamos construir consensos metodológicos mínimos.  Tarefa primeva é definir o critério de estabelecimento da reincidência criminal que pode ser : (a) reincidência por autoculpa, que considera nova prática de crime declarada pelo mesmo indivíduo; (b) reincidência policial, que é estabelecida por novo registro de crime do indivíduo na polícia, com posterior investigação e indiciamento; (c) reincidência penal, que supõe o processamento penal do mesmo indivíduo por nova prática de crime; (d) reincidência judicial, que envolve nova condenação do mesmo indivíduo por nova prática de crime; (e) reincidência penitenciária, que ocorre quando há segundo ingresso na prisão do mesmo indivíduo por nova prática criminal; (e) reincidência jurídica, que é nova condenação do indivíduo por novo crime cometido, tendo sua sentença transitado em julgado. Dependendo da escolha realizada, a magnitude do fenômeno será bastante distinta, tendendo a ser menor à medida que se aproxima do sentenciamento.  Defendo o argumento, assim como a socióloga Roberta Fernandes, de que o critério mais adequado para a realidade brasileira seria a reincidência policial. O indiciamento do indivíduo no inquérito policial é suficiente para confirmar o cometimento de novo crime, não sendo necessário esperar a fase processual para tanto. Há inúmeros estudos sobre o fluxo da justiça criminal na sociedade brasileira, inclusive, que evidenciam como a dinâmica do processo penal se sustenta em boa medida nas evidências de autoria e materialidade obtidas na fase inquisitorial.

Por fim, é preciso assumir o conceito de Reincidência e não de Reentrada como norteador dos estudos. Reentrada é conceito adequado para a movimentação cotidiana das unidades prisionais que se caracteriza por saídas e entradas de indivíduos. As saídas podem ser por óbito, progressão de pena, fugas/evasão, transferência para cumprimento de pena em outra unidade, movimentações para visita ao fórum, entre outros. De forma similar, as entradas se dividem em entrada para cumprimento de pena,  transferência de outra unidade prisional para  cumprimento de pena, recaptura de foragidos, cumprimento de mandatos de prisão em aberto, entre outras. Como se constata, o conceito de reentrada contempla gama variada de situações de aprisionamento que extrapolam o fenômeno da reincidência criminal. O indivíduo pode reentrar na unidade prisional devido à sua recaptura após fuga realizada em período anterior, o que não o caracteriza como reincidente criminal. Em outras palavras, um indivíduo que reentrou não é necessariamente um reincidente criminal. A reentrada diz respeito a uma dimensão meramente administrativa, ao passo que a reincidência diz respeito a uma dimensão criminológica.

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