Múltiplas Vozes 29/03/2023

Sobre rebeliões e condições dos estabelecimentos prisionais

A questão penitenciária no Brasil está ainda num patamar muito elementar. Estamos na fase em que é preciso não torturar presos e garantir direitos mínimos como saúde e preservação da integridade física daqueles sob a custódia do Estado

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Túlio Kahn

Consultor sênior na Fundação Espaço Democrático e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Agora em março presenciamos no Rio Grande do Norte uma série de rebeliões e ataques externos promovidos pelas facções criminosas que controlam os presídios naquele estado. Rebeliões semelhantes eclodem vez por outra em diversos estados e a justificativa, quase sempre, são as péssimas condições carcerárias, os maus tratos e as violações aos direitos por parte dos governos estaduais.

Não existe justificativa para ataques a bens e população civil como os perpetrados. São atos terroristas e as lideranças desses movimentos devem ser punidas, mas no estrito rigor da lei. Existem outros canais e modos pacíficos de reivindicações legítimas.  Todavia, existem evidências de que punições e o cumprimento da pena no RN extrapolam o rigor da lei: há denúncias de tortura, maus tratos, precariedade da alimentação e superlotação, entre outras mazelas, e o poder público deve ser igualmente responsabilizado pela situação. O relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura visitou cinco unidades prisionais do RN em novembro de 2022 e constatou sérias irregularidades, tendo feito nada menos de 138 recomendações aos órgãos públicos (inclusive ao governo federal…). https://mnpctbrasil.wordpress.com/2023/03/22/mnpct-publica-relatorio-de-inspecao-em-unidades-de-privacao-de-liberdade-do-rio-grande-do-norte/ .

Independente das justificativas morais e jurídicas, existem evidências empíricas da relação entre condições de cumprimento da pena e incidentes prisionais, como rebeliões, assassinatos e fugas?

O CNJ mantem desde 2008 um sistema de registro das inspeções prisionais que os juízes são obrigados a fazer periodicamente. Segundo os últimos dados do CNIEP, existem cerca de 2000 estabelecimentos prisionais no Brasil, abrigando 644 mil presos e com capacidade de 484 mil vagas. https://www.cnj.jus.br/inspecao_penal/mapa.php

Entre outros indicadores, o CNIEP levanta a quantidade de rebeliões, mortes naturais, homicídios, fugas e lotação de cada unidade visitada. Ao final da visita, o juiz de execução penal faz uma avalição das condições gerais da unidade prisional, utilizando uma escala de cinco pontos graduada de “Excelente” a “Péssima”. Através do sistema, sabemos que, entre 2008 e 2022, foram registradas 2005 rebeliões prisionais (média de 133 por ano), morreram por causas naturais 12.346  mil presos, por mortes não naturais (acidentes e homicídios) 2.544 presos e ocorreram aproximadamente 133 mil fugas (cerca de 9 mil por ano).

Na tabela abaixo, calculamos a média entre 2008 e 2022 de rebeliões, mortes naturais e mortes não naturais, por condição da unidade prisional. As duas últimas colunas trazem a porcentagem de fugas e a relação preso/vaga dentro de cada categoria.

Os dados e o gráfico sugerem que há uma clara relação linear entre as condições do estabelecimento e a quantidade de incidentes: regra geral, quanto piores as condições, mais rebeliões e mortes são observadas. Também são maiores a porcentagem de fugas e a superlotação da unidade.

A taxa de rebeliões por 10 mil presos passa de 0,46 nas unidades avaliadas como excelentes para 3,73 nas unidades avaliadas como péssimas. Mortes naturais dobram da primeira à última categoria. Mortes não naturais passam, por sua vez, de 0.38:10 mil para 2,74 conforme as condições vão se deteriorando. A porcentagem de fugas passa de 0,14 para 2,48%. A relação preso/vaga, finalmente, tende a ser maior nas unidades em piores condições.

 

Obviamente que a relação é um tanto tautológica, pois certamente os juízes levam em consideração esses indicadores para fazer a avaliação global da unidade. Assim, não é possível saber se são as condições ruins que levam a mais incidentes ou se mais incidentes pioram a avaliação dos juízes sobre a unidade. Provavelmente ambos os sentidos interpretativos são válidos.

Mas a avaliação dos juízes leva em conta diversos outros indicadores, tais como área destinada para visita familiar, área de banho de sol, existência de biblioteca, enfermaria, espaço para a prática esportiva, gabinetes odontológicos, assistência religiosa, local para visita íntima, oficinas de trabalho, sala de entrevista para advogado, salas de aula, separação de presos primários e reincidentes, prestação de assistência jurídica, social, apreensões de armas e celulares, etc. São muitos os indicadores que contribuem para a avaliação e não somente o que chamamos de “incidentes” prisionais.

Os dados parecem corroborar, portanto, a alegação dos presos de que existe uma vinculação entre as rebeliões, fugas e as violações do Estado à Lei de Execuções Penais. Não chega a ser uma novidade para quem já atuou no sistema prisional, mas é interessante quantificar a relação.

Seria útil se conseguíssemos analisar os indicadores por tipo de unidade e de gestão. Ao que parece, os indicadores são melhores nas unidades tipo APAC e nos presídios estaduais e piores nas Cadeias Públicas e Delegacias, que abrigam condenados em situação irregular. O problema é que existem literalmente centenas de rótulos diferentes para as unidades prisionais e as definições não são unívocas entre os Estados. Existem Cadeias Públicas, Penitenciárias, Presídios, Delegacias, Unidade Prisional, Centro de Ressocialização, Centro de Detenção, Unidade Penal, Estabelecimento Penal, Instituto Penal, Conjunto Penitenciário, Casa de Detenção, Complexo Penitenciário, Casa de Custódia, Unidade Penitenciária, etc. Cada um dá o nome que quer, segundo o critério e costume local.

Para fazer essa análise, o DEPEN precisaria estabelecer um sistema de classificação uniforme para todo o país, com no máximo uma dezena de características principais. Vimos que condições afetam os incidentes. Precisamos saber quais outras variáveis também impactam: gestão pública, privada, comunitária? Agentes públicos ou terceirizados? Que tamanho de unidade tem o melhor desempenho? A análise poderia sugerir caminhos para melhorar a gestão prisional estadual e federal.

Com relação ao CINIEP, também é possível pensar em melhorias. Uma medida fácil seria o CNJ disponibilizar a base de dados completa, para avaliarmos quais aspectos específicos das “condições” contribuem para os melhores desfechos. São as visitas íntimas? A existência de trabalho? De salas de aula? Não conseguimos detalhar essas variáveis na forma como os dados são disponibilizados atualmente. A avaliação das unidades poderia também incluir a opinião dos funcionários e até mesmo de uma amostra de presos, se forem asseguradas condições de anonimato e representatividade da amostra. Faltam também indicadores sobre as condições físicas das unidades.

Mas a questão penitenciária no Brasil está ainda num patamar muito mais elementar. É quase surrealista falar em melhores bases de dados e pesquisas para melhorar o sistema. Ainda estamos na fase em que é preciso não torturar presos e garantir direitos mínimos como saúde e preservação da integridade física daqueles sob a custódia do Estado. Garantir essas condições mínimas, como o artigo sugere, pode ser uma maneira eficaz de evitar coisas como as que estamos vendo no Rio Grande do Norte nesta última semana.

 

Referências

Beato Filho, Claudio, et al. “Percepções Sociais sobre o Sistema Prisional Brasileiro:: um estudo quantitativo.” Revista Brasileira de Execução Penal-RBEP 1.1 (2020): 279-305.

Macaulay, Fiona. “Os Centros de Ressocialização no Estado de São Paulo: Estado e sociedade civil em um novo paradigma de administração prisional e reintegração de ofensores.” Revista de Estudos Criminais 7.26 (2007): 63-86.

Kahn, Tulio. Além das Grades: radiografia e alternativas ao sistema prisional eBook Kindle, 2014. https://www.amazon.com.br/Al%C3%A9m-das-Grades-radiografia-alternativas-ebook/dp/B00R8K8XRM/ref=sr_1_8?qid=1679585936&refinements=p_lbr_books_authors_browse-bin%3ATulio+Kahn&s=books&sr=1-8

Manso, Bruno Paes, and Camila Nunes Dias. “PCC, sistema prisional e gestão do novo mundo do crime no Brasil.” Revista brasileira de segurança pública 11.2 (2017).

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