Segurança Pública na Amazônia 24/01/2024

Sistema prisional e estruturação das facções criminosas na Amazônia

A superlotação em espaços que já eram precários inflou o problema e deu ainda mais condições às facções para funcionarem como cogestoras das prisões brasileiras. Essa dinâmica chegou na Amazônia Legal e fez desse território um cenário de conflitos violentos também dentro do sistema prisional

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Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Instituto Mãe Crioula

O processo de expansão e consolidação das facções criminosas na Amazônia Legal está diretamente vinculado às dinâmicas de funcionamento do sistema prisional. No Brasil, já está consolidada na literatura especializada a relação intrínseca entre as prisões e a criminalidade organizada.[1] Sabe-se, portanto, que o Estado possui uma participação que não pode ser desprezada na estruturação desses grupos, sobretudo na medida em que as prisões foram os primeiros espaços de negociações que levaram à organização dos presos em grupos.

De modo geral, a dinâmica inicia pela convivência entre os presos nos cárceres, onde se estabelecem laços e associações que evoluem, inicialmente, para grupos destinados a demandar melhores condições para a sua estadia nas prisões, em busca da garantia de necessidades básicas como higiene e alimentação. Conforme destacam Dias, Lourenço e Paiva, as relações entre presos não criam mundos paralelos, mas maneiras de se relacionar no mundo social vigente, “explorando espaços que o poder público não foi capaz de ocupar”, inclusive aqueles geridos pelo Estado.

Se sentir seguro e ter a integridade física preservada são alguns dos benefícios almejados pelos presos ao integrarem esses grupos. A gestão compartilhada do sistema prisional entre Estado e grupos criminais foi intensificada com o crescimento exponencial da população prisional a partir da promulgação da Lei de Drogas, em 2006, que implicou no aumento das prisões de indivíduos acusados pelo crime de tráfico de drogas sem que as estruturas prisionais estivessem adaptadas a receber o aumento desse contingente de presos. A superlotação em espaços que já eram precários inflou o problema e deu ainda mais condições às facções para funcionarem como cogestoras das prisões brasileiras, recebendo, em troca, um exército de “soldados do crime” comprometidos a atuarem pelos grupos quando postos em liberdade.

É através dessa associação cárcere-rua que surgiram as principais organizações criminosas do país, hoje em atuação a nível nacional e internacional. O CV e o PCC nascem nas prisões e consolidam um modelo que vai sendo replicado nas realidades locais de outros estados. Conforme já apresentado, essa dinâmica inaugurada no Sudeste chegou na Amazônia Legal e fez desse território um cenário de conflitos violentos não só na rua, como também dentro do sistema prisional. Os massacres nos presídios a partir de 2016 escancararam a presença das organizações na gestão interna das prisões, bem como na utilização desses espaços como locus de disputas que refletem no incremento da violência dentro e fora do cárcere.

Em Manaus (AM), por exemplo, em janeiro de 2017 no complexo Penitenciário Anísio Jobim, conhecido como Compaj, foram 56 mortes em um único evento, que é considerado o maior massacre do sistema prisional do Amazonas. Em Boa Vista (RR), logo nos primeiros dias de 2017, foram 33 mortos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. Em julho de 2019, em Altamira (PA), foram mais 58 vítimas fatais dentro do Centro de Recuperação Regional de Altamira.

A violência letal que ocorre dentro dos muros do sistema prisional é a consequência mais extrema de um problema cuja raiz está, por um lado, no abandono desses espaços por parte do poder público e, por outro, no aumento da população prisional a cada ano que passa. Nos últimos anos, na Amazônia Legal, a quantidade de presos cresce mais intensamente do que no restante do país. Quando analisamos um período de 10 anos, houve aumento de 43,3% na taxa de presos por 100 mil habitantes no Brasil e de 67,3% na Amazônia Legal, que passou de uma população privada de liberdade de 54.542 pessoas para 98.034.

Se em 2012 a taxa era de 210,9 pessoas privadas de liberdade por 100 mil habitantes na região amazônica – enquanto no país o valor era de 286,1 –, em 2022 a taxa da Amazônia Legal chegou a 352,8, enquanto no Brasil subiu para 406,9. Vale ressaltar que esses valores englobam o total de pessoas privadas de liberdade, incluindo todos os regimes (fechado, semiaberto e aberto) e em prisão domiciliar (com ou sem monitoramento eletrônico). Observando as UFs em específico, chama a atenção a variação no Maranhão, que teve crescimento da taxa de presos de 134,5% em 10 anos e Roraima, com aumento de 94,7%.

No gráfico 11 é possível visualizar como a superlotação dos presídios nos estados da região se intensificou nos últimos anos. Em 2012, as taxas nacional e regional estavam mais distantes entre si, mas começam a se aproximar e, em 2020, ficam bastante semelhantes, ainda que a taxa nacional continue a ser maior. Em 2021, o fenômeno se intensificou novamente no país, quando há um novo pico de crescimento da população prisional. Na região amazônica, por outro lado, nota-se uma certa estabilização da taxa nos últimos dois anos.

Contribui para o fenômeno da expansão das facções criminais no interior do sistema prisional a alta incidência de presos em prisão provisória. O perfil prisional desse grupo é normalmente constituído por indivíduos acusados de crimes que, apesar de penas elevadas na legislação brasileira, como tráfico de drogas e roubo, podem ser cometidos em situação de menor potencial ofensivo, com pequenas quantias de drogas apreendidas, por exemplo. Além disso, o perfil dos presos costuma se repetir e já é bastante conhecido: são jovens negros, oriundos das áreas mais vulneráveis das grandes cidades e que atuam nos níveis mais baixos do mercado ilegal de drogas.

É verdade que o percentual de presos provisórios vem caindo continuamente no país. Há uma década, em 2013, eles representavam 40,1% do total de pessoas privadas de liberdade no país.[2] Em 2023, o valor caiu para 25,1% o que, de fato, é uma boa notícia e indica um sistema de justiça a priori mais preocupado em se valer do instrumento da prisão preventiva – quando ainda não há elementos suficientes a indicar a culpabilidade do réu – apenas em casos mais graves. Quando esse número é observado com um pouco mais de cautela, contudo, nota-se que, uma fração importante dessa queda no percentual de presos provisórios decorre do uso de alternativas à prisão, como prisão domiciliar e monitoramento eletrônico e não necessariamente de um processo de desencarceramento.

Considerando o contingente de presos provisórios em celas físicas (ou seja, excetuando-se todos aqueles que estão em monitoramento eletrônico ou em prisão domiciliar), o percentual de provisórios em 2023 foi de 27,8% no país, uma queda de 6,7% em relação ao ano de 2020; menor, portanto, do que a variação negativa de 16,8% quando analisados o total de presos, incluindo aqueles que não estão em celas físicas. Nas UFs da Amazônia Legal, o percentual de presos provisórios é, em média, maior do que o observado no restante do país. Em 2020, eram 34,0% de presos nessa situação na região, quando no Brasil o valor foi de 29,8%. Em 2021, foram 35,2% na Amazônia, o maior valor do período, caindo para 31,7% em 2023. Quando se olha para os estados individualmente, alguns casos chamam a atenção, como no Amazonas, onde 46% dos presos em 2023 eram de presos provisórios (considerando apenas aqueles em celas físicas). No Mato Grosso, esse valor também foi elevado, de 42,3%.

O que os dados ajudam a desenhar, portanto, é um cenário em que as dinâmicas de funcionamento do sistema prisional precisam ser consideradas quando se busca enfrentar de modo mais eficaz a expansão das facções criminosas no país. É a partir do cárcere e por meio da convivência intramuros que esses grupos não só nasceram, como se sustentam e se fortalecem ao longo do tempo. Esse é um fenômeno já conhecido para o Sudeste, mas que também precisa ser observado no caso da Amazônia Legal, sob pena de serem repetidos os mesmos erros que permitiram que grupos organizados para reivindicar melhores condições prisionais tenham se transformado em organizações criminosas transfronteiriças.

*O texto original foi publicado em Cartografias da Violência na Amazônia e pode ser lido na íntegra neste link: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2023/11/cartografias-violencia-amazonia-ed2.pdf>.
[1] DIAS, Camila Nunes; SALLA, Fernando. Organized crime in Brazilian prisons: the example of the PCC. International Journal of Criminology and Sociology, v. 2, p. 397, 2013.
[2] FBSP. 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo, 2014, p. 68.

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