Múltiplas Vozes 21/02/2024

Sistema Penitenciário Federal, 18 anos depois: um jovem adulto

Se a mera existência e relativa estruturação do SPF não foram suficientes para barrar o avanço da criminalidade organizada no país desde a sua criação, é urgente que discutamos: qual papel tem um sistema punitivo excepcional, baseado na premissa do rigor, aliada à esperança da dissuasão, para a produção de controle do crime? Qual a sua eficácia real?

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João Vitor Rodrigues Loureiro

Doutor em Sociologia pela UnB. Analista Técnico de Políticas Sociais. Pesquisador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais da UnB

A fuga de dois internos da Penitenciária Federal de Mossoró (PFMOS) acendeu um alerta sobre as falhas que contribuíram para sua ocorrência. Essas falhas vêm sendo exploradas não apenas pelos meios de comunicação, mas também pelo oportunismo partidário, que deseja associá-las a uma suposta conivência do atual governo com elas, com a insegurança ou com uma suposta permissividade com o crime organizado, assim como fragilizar a figura do recém-empossado ministro da Justiça e Segurança Pública, Enrique Ricardo Lewandowski.

Parafraseando Nena Queiroga, interpretada por Jorge de Altinho, “devagar que o santo é de barro”.  Contornos emergenciais foram adotados para a situação: afastada a direção da PFMOS, nomeada intervenção, iniciada a apuração do ocorrido e mobilizados o Secretário Nacional de Políticas Penais e o próprio ministro da Justiça e Segurança Pública até o interior do Rio Grande do Norte para acompanhar de perto as operações de recaptura, até o momento não é possível atribuir conivência de quaisquer autoridades com a fuga, embora a suspeita permaneça. As perícias no ambiente indicam que a fuga, ocorrida durante um feriado de Carnaval, decorreu de falhas do sistema de videomonitoramento e de obras na unidade.

Não é demais lembrar que o Sistema Penitenciário Federal (SPF), integrado pela Penitenciária Federal de Mossoró e por outras quatro unidades (em Brasília, Campo Grande, Porto Velho e Catanduvas) foi obra criativa da gestão do primeiro governo Lula, aconselhado por Márcio Thomaz Bastos, então ministro da Justiça, para debelar a primeira grande crise na Segurança Pública do país, ocorrida em 2006, durante os ataques do Primeiro Comando da Capital. Estabelecido após mudanças na Lei de Execução Penal que criaram o Regime Disciplinar Diferenciado – RDD, o SPF vestiu uma certa capa (ou missão) heroica: salvar o país do crime organizado. Não por acaso, a missão declarada do Sistema é “combater o crime organizado isolando suas lideranças e presos de alta periculosidade, por meio de um rigoroso e eficaz regime de execução penal, salvaguardando a legalidade e contribuindo para a ordem e a segurança da sociedade.”

Atingindo sua maioridade, ao longo destes 18 anos o Sistema – que é uma exceção dentre exceções – na execução penal brasileira modernizou-se, expandiu em números e contratou policiais penais, mantendo proporções vultosas entre estes e o número de pessoas privadas de liberdade. Sua marca principal, o confinamento solitário – solitary confinement – tem desafiado legalidade dos códigos, tendo em vista que chefes do crime organizado – como Marcola e Fernandinho Beira-Mar – encontram-se sujeitos ao regime de maneira indefinida e continuamente prorrogada pelo Judiciário, sem que se saiba se os limites legais atualmente vigentes no país, de prazo de cumprimento de pena, serão adotados para casos de lideranças notórias. Até o dia em que sua soltura será mandatória.

Como qualquer “jovem adulto”, o SPF atravessa sua crise de maioridade. A recente fuga dos detentos arranhou a imagem frequentemente orgulhosa dos policiais penais federais, que tanto almejaram alcançar a categoria inserida como “carreira de segurança pública” mediante previsão constitucional. Não se trata mais de um sistema “zero fuga, zero rebelião, zero item ilícito”. Pelo menos não no quesito zero fuga. Ademais, o episódio de fuga representa a ponta de um iceberg de outros problemas estruturais do Sistema Federal, caracterizado por um quadro de adoecimento psíquico de policiais penais e presos, uso expressivo de medicamentos psicotrópicos e mesmo suicídios.

Mais que uma avaria na couraça da imagem profissional dos policiais penais federais, que já sofrem com os efeitos da “prisionização” em suas vidas profissionais e pessoais, o episódio da fuga traz à tona temas fundamentais. A busca pela recaptura se torna muito menos uma questão de segurança pública e muito mais uma questão de honra – de o Estado penal, vigilante, fazer cumprir a lei, fazer cumprir os compromissos declarados pela lei. Afinal, é muito pouco provável que duas pessoas em fuga consigam, sozinhas e nas condições em que se encontram, subverter toda a ordem social ou ameaçar o sistema penitenciário federal por completo, muito embora o sistema afirme custodiar lideranças criminais e presos de alta periculosidade.

O que o episódio traz à luz é, na verdade, a questão estruturante: qual o papel das prisões na garantia da segurança pública? E mais, qual o papel do sistema penitenciário federal para o cumprimento dessa finalidade para a sociedade brasileira? Se observarmos os indicadores frios – que podem e devem ser problematizados por qualquer estudioso do assunto – a sociedade não viu diminuírem ocorrências, não reduziu a sensação de medo e insegurança, não viu redução de homicídios, e muito menos desarticulou o crime organizado desde a criação do Sistema, em 2006. Basta observar como grupos criminais operam em cidades e regiões do interior nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, e como suas complexas dinâmicas de atuação, ora em conflitos abertos, ora mediante acordos tácitos, procuram pontos de equilíbrio na distribuição de drogas, armas e dos dividendos do crime no país.

Por um lado, podemos entender a criação do SPF como instrumento paliativo de uma situação de crise deflagrada em 2006. Por outro, se a mera existência e relativa estruturação do SPF não foram suficientes para barrar o avanço da criminalidade organizada no país desde a sua criação, é urgente que discutamos: qual papel tem um sistema punitivo excepcional, baseado na premissa do rigor, aliada à esperança da dissuasão, para a produção de controle do crime? Qual a sua eficácia real?

Talvez o alcance de sua maioridade seja uma boa oportunidade para essa reflexão.

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