Guaracy Mingardi
Analista criminal e Associado sênior ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O noticiário nunca deixa de me surpreender. E um dos principais motivos é a ingenuidade, suposta ou real, com que algumas notícias são veiculadas. O exemplo mais recente são as manchetes acerca do assassinato do informante que teria “aberto o bico” sobre as finanças do Primeiro Comando. Desde novembro, data do fato, elas seguiram a seguinte linha: primeiro, espanto pelo local do crime, Aeroporto Internacional de Guarulhos, e, em segundo, com a prisão de policiais suspeitos de participar dele.
A primeira questão levantada, e não inteiramente respondida pela imprensa, tem a ver não somente com o local escolhido pelos assassinos, mas também com a logística. Afinal é um dos pontos mais protegidos do país. Por que lá? A resposta tem a ver com a rede de informantes que essa organização criminosa possui. É evidente que os criminosos sabiam que ele estaria naquele ponto no exato momento em que atacaram. Nada teria sido deixado ao acaso. Quanto a ser um local policiado, e com inúmeras câmeras de vigilância, quem planejou a morte não fez um trabalho perfeito. Na verdade, nunca são, senão nenhum homicídio premeditado seria rachado pela polícia.
Quanto à participação de policiais na trama, isso não deve ser motivo para tanto espanto. Há cerca de 29 anos, quando escrevi meu doutorado sobre crime organizado, mencionei que uma das características básicas desses agrupamentos é terem algum tipo de vínculo com o Estado. De outra forma teriam vida curta. Para não dar a impressão de “louvor em boca própria[1]”, não creio que isso seja uma ideia original; devo ter lido algumas afirmações similares, embora não recorde onde. Na prática os grandes grupos criminais tendem a manter na sua folha de pagamento pessoas que podem influir negativamente em suas atividades. O exemplo clássico são funcionários públicos ligados a órgãos de fiscalização e policiais. Algumas vezes chegam mais alto no Executivo, ou mesmo indo até o Judiciário ou Legislativo.
Isso não significa que devamos suspeitar de todos policiais ou fiscais, mas qualquer organização encarregada de reprimir o ilícito sabe que tem de ficar de olho em seus quadros para não perder o rumo. Para isso, aliás, existem as corregedorias. Uma constatação empírica desse fato adveio de minha participação em uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa de São Paulo[2]. Na prática, a CPI pegou pesado com os desmanches de carros roubados. Era um comércio muito comum naquela época. E praticamente em todos os casos em que o dono não cuidava pessoalmente do “negócio”, os gerentes mantinham um livro-caixa no qual anotavam receita e despesa. E, pasmem, em alguns estavam registrados os primeiros nomes de quem haviam comprado determinados veículos, além de policiais e fiscais a quem pagavam propina. Ou seja, mesmo essas pequenas organizações tinham de se preocupar em manter na folha de pagamento aqueles que deveriam controlá-los. Portanto não é nenhuma novidade que o PCC, e grupos similares pelo país, tenham em sua folha de pagamento policiais que se deixaram corromper.
Um exemplo mais genérico que forjou meu pensamento na época foi dado pelo saudoso Coronel Cerqueira, ex-comandante da PM carioca. Numa conversa em seu gabinete ele mencionou que a ideia de Ponto de Tráfico revela uma faceta dessa contaminação. Pois seria um local onde, dia após dia, a todo momento, um crime é cometido. Ou seja, impossível os órgãos de repressão não saberem do fato. Só a corrupção de alguns, bem como a atitude complacente de outros, permitia que isso continuasse ocorrendo. Alguns podem retrucar, mencionando o caso de algumas favelas cariocas onde a polícia não tem livre trânsito. Mas, esse fenômeno não é generalizado nem no Brasil nem no mundo E, mesmo em regiões da cidade nas quais a polícia trabalha continuamente, existem locais onde um usuário encontra a sua droga favorita[3].
Outra fonte de admiração para setores da imprensa, normalmente não especializados, foi a operação em si. Empregar meios tão drásticos para eliminar um obstáculo, chamando a atenção para si de todo o noticiário. Para entender isso, basta lembrar que boa parte dos grupos criminosos de porte não se acanha em eliminar qualquer um que atrapalhe seus negócios. Os exemplos ao redor do mundo mostram isso à saciedade. O caso mais notório foi a morte de um juiz italiano pela máfia siciliana nos anos 1990. Giovanni Falcone foi morto com a família e guarda-costas por meio da explosão de uma tonelada de TNT na estrada que viajava. Ou seja, tinham informação de que ele ia passar por ali a determinada hora. E não ligaram para a repercussão do fato.[4]
Mais próximo de nós, tanto no tempo como no espaço, temos o assassinato do narcotraficante Jorge Rafaat Toumani na fronteira Brasil/Paraguai. Depois de sofrer três tentativas de assassinato malsucedidas, o criminoso foi eliminado pelo PCC em junho de 2016. Foi por meio de uma ação cinematográfica com uso de armamentos antiaéreos e metralhadoras de uso exclusivo das Forças Armadas. Segundo os investigadores, o crime foi cometido por cerca de cem mercenários. No atentado que pôs fim a sua vida ele estava em uma camionete blindada e escoltada por cerca de 30 seguranças. Ela foi bloqueada por outro veículo em um cruzamento de Pedro Juan Caballero. Segundo as informações disponíveis, desse carro partiram mais de 400 disparos de uma metralhadora .50. As imagens divulgadas pela Polícia Nacional do Paraguai mostram a cabeça do traficante perfurada em mais de um local, bem como inúmeras outras perfurações.
Ou seja, para o Primeiro Comando da Capital e grupos congêneres, dane-se a repercussão. O que interessa é proteger a organização e ver o dinheiro ilegal entrando. O resto é gritaria da imprensa, que amanhã vai esquecer o assunto.