Múltiplas Vozes

Relações públicas e questões privadas: a questão da regulação das redes sociais na Polícia Militar

A acertada normatização da relação do uso de bens públicos, ainda que simbólicos, pelos integrantes da corporação, atende à ética do serviço público e às relações impessoais que devem reger as relações entre o Estado e a sociedade civil

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Alan Fernandes

Doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas e Associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Há pouco mais de dez dias, a Polícia Militar do Estado de São Paulo publicou normatização sobre o uso de mídias sociais e aplicativos de mensagens voltada a regular a utilização de sua imagem por seus integrantes, nas suas interações digitais pessoais. Pela regra, ficam vedados a criação, edição, postagem ou compartilhamento de conteúdos que se relacionem, direta ou indiretamente, com a corporação, a exemplo de vídeos, imagens, áudios, textos, mensagens e links. 

A definição de uma política institucional de utilização de fardas e viaturas e a divulgação e comentários sobre assuntos institucionais era uma demanda requerida por muitos, dentro e fora da corporação. Por outro lado, foram muitas as pessoas que criticaram esse regramento, invocando a liberdade de expressão e outros direitos que a Constituição Federal brasileira assegura. O tema é sensível, pois conteúdos produzidos por policiais têm um alcance público expressivo, o que permite ganhos privados das mais variadas maneiras, à revelia de gestão institucional e pública desses conteúdos.

Na exposição de motivos que levaram a esse regramento, a Polícia Militar traz que as comunicações pessoais impactam as formas pelas quais a sociedade modula as percepções sobre a prestação dos serviços de segurança pública oferecidos e constrói uma sensível parcela da imagem corporativa. Segundo a norma, “a investidura policial militar impõe à pessoa detentora dessa condição uma gama de responsabilidades e deveres, inclusive na condução de sua vida particular”. Pela leitura dessa justificativa, mostra-se a corporação ciosa das questões éticas que os policiais militares devem considerar na relação entre o público e o privado.

Mas há outros aspectos que importam nessa discussão. Um deles é o fato de que, em qualquer organização, os meios que permitem a produção de suas atividades estão sujeitos a alguma regra, definida por parte das pessoas ou grupos que detêm o controle sobre esses recursos. Nas organizações públicas, como é o caso das polícias, esse controle pertence, ao fim e ao cabo, à sociedade, de forma que os meios possam atender a fins públicos, e não serem utilizados para fins privados. 

A replicação do valor da farda e de sua indumentária foi instrumentalizada pelas redes de televisão, antes das redes sociais, na multiplicação de programas que exibiam policiais e suas operações na procura por criminosos. Ao oferecer uma imagem do bem contra o mal, ganhava pontos de audiência alavancada pelo desfile de uniformes e armas. As polícias, por seu turno, possuíam o controle sobre sua política de comunicação, muito diferentemente da época atual, em que a capacidade de controlar a imagem institucional fragmenta-se. Isso fez com que as polícias, e, por consequência, a sociedade, possuíssem pouquíssima capacidade de gestão da imagem dessas corporações, não obstante o reconhecido valor que seus símbolos e cotidiano agregam às postagens de seus policiais. 

Assim, pelos argumentos trazidos acima, a regulação da exposição da imagem da Polícia Militar é correta, seja pelas razões éticas que regulam a vida dos servidores públicos em geral e dos policiais militares em específico, mas, principalmente, pela regulação da utilização privada do capital simbólico instrumentalizado pela corporação, que, por não lhe pertencer, não pode, igualmente, ser alocado ao particular, no caso, seus integrantes.

Por outro lado, por que essa questão se mostra sensível a uma boa parcela de policiais militares? As razões não se ligam somente à política ou aos ganhos financeiros.

O uso da rede social é visto por ampla parcela dos policiais militares como forma de conferir-lhes visibilidade diante da perda de individualidade requerida de seus integrantes pelas instituições militares, nas quais o corpo coletivo é mais requerido que as subjetividades. Assim, as redes sociais são vistas como um instrumento de afirmação identitária (vários policiais ressentem-se de terem de mitigarem um aspecto de suas vidas, pois as apropriações que fazem dos símbolos policiais militares seriam uma forma de fazerem uma releitura (apoiada pelas “curtidas”), de como elas e eles são bons, a despeito das críticas contra si, que avaliam serem duras demais. Em uma compreensão de que a sociedade os enxerga apenas de forma negativa, o regramento das redes sociais, que, aos olhos de alguns policiais militares, poderia retratar o lado positivo de seu trabalho, é visto como uma forma de invisibilizá-los. No conto O Espelho, de Machado de Assis, escrito em 1882, Jacobina, um recém-empossado alferes (o equivalente ao 2º Tenente), via sua imagem desfigurada quando despido de sua farda. Apenas a (re)encarnação de seu uniforme era capaz de dar completude à sua autoimagem. Adulado pelos mimos de sua tia e cercado pelas mesuras da sociedade à sua volta, Jacobina não se via completo senão pelo reconhecimento de sua posição social. Sua subjetividade (ou alma interior) fora diminuída em razão do protagonismo de sua identidade como militar.

A acertada normatização da relação do uso de bens públicos, ainda que simbólicos, pelos integrantes da corporação, atende à ética do serviço público e às relações impessoais que devem reger as relações entre o Estado e a sociedade civil. Todavia, para além das relações do plano da política, é nas relações humanas de policiais com os cidadãos que se perfaz segurança pública. Para muitos policiais, as restrições colocadas os tornam anônimos perante as pessoas, além de prejudicarem o serviço da polícia, e, ainda, os deixa mais irreconhecíveis diante de seus próprios espelhos.

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