João Vitor Rodrigues Loureiro
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Pesquisador vinculado ao Laboratório de Gestão de Políticas Penais da UnB – LabGEPEN/UnB
Uma das primeiras e mais importantes reflexões sobre qualquer profissão, na atualidade, diz respeito a seu grau de especialização. Há razões que nos levam a crer que, quanto mais especializada uma área de conhecimento e atuação profissional, mais seus profissionais encontram algum grau de apoio público, reconhecimento e respaldo para atuarem. Por exemplo: buscamos inicialmente um dermatologista se sentimos urticária; se precisamos consertar um computador, recorremos a um técnico especializado nesse tipo de reparo; se queremos nos divorciar, buscamos um advogado especializado. A modernidade foi estabelecida na premissa de especialização do conhecimento, legitimando diversos tipos de atores em processos de solidariedade e coesão social.
Não é diferente com a segurança pública. Atualmente, para citarmos alguns exemplos, existem grupos especializados no combate ao crime organizado (nos aspectos investigativos, no âmbito das polícias judiciárias estaduais e Federal), batalhões específicos da PM voltados à repressão a crimes de violência contra as mulheres, ou mesmo o policiamento nas rodovias federais, concebido por meio de uma carreira específica para esse fim.
Embora segurança pública encontre esteio em uma série de atividades muito além das de natureza policial – como aquelas relacionadas aos processos de prevenção primária, que visa à promoção de direitos, inclusão social, mediante oferta de acessos sociais diversos que evitem a decisão pelo desvio – nosso modelo de profissionalização sistêmica desse campo centraliza-se nas polícias, no que se refere à operacionalização – e não à estratégia – do Sistema Único de Segurança Pública, previsto no art. 9º, § 2º, da Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018.
Usando-se essa noção, mas com a real motivação de valorização dos ex-agentes penitenciários, em 2019 foi incluída uma categoria no art. 144, VI, da Constituição: os policiais penais. O contexto das atividades desses profissionais está adstrito aos objetivos da Lei de Execução Penal, “a reintegração social”. Inclusive, é possível afirmar que, no ciclo do Sistema Penal, esse campo é o da Política Penal, do cumprimento das decisões judiciais no campo da punição – não das ações ostensivas, repressivas e de investigação da segurança pública, mesmo que o sistema prisional colabore para os objetivos da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, art. 6 º, da Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018.
Considerando essa problemática, embora as regulamentações dependam de regramentos estaduais, algumas diretrizes nacionais mínimas para a atuação desses profissionais, se por um lado são desejáveis – do ponto de vista das atitudes, competências e habilidades exigidas – por outro, também podem representar certos riscos, se não forem definidas a partir de um amplo processo de discussão e escrutínio públicos, mediante participação dos setores diversos que compreendem as atividades relacionadas à execução penal. Trata-se de desafios relacionados a atuações historicamente sedimentadas ou ainda em aberto, em disputa na conformação do papel desses profissionais.
Por quê? As atividades de custódia são apenas uma das muitas partes que formam o arco dos chamados serviços penais, hoje também estruturados, em nível nacional, no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública: a Secretaria Nacional de Serviços Penais – Senappen (outrora Depen). Muito além das rotinas de vigilância (em muralhas, torres e postos de entrada/saída), acompanhamento de retirada/reingresso em celas e vivências, acompanhamento em audiências judiciais, inspeções internas e pessoais) o policial penal constitui-se num elo essencial para a regularidade dos serviços prisionais e atuação das demais carreiras profissionais integrantes do sistema, garantindo o exercício de serviços assistenciais e direitos diversos (como saúde, educação, trabalho, assistência jurídica, rotina de visitantes) na prisão. Além deles, os serviços relacionados à custódia provisória e à vida pós-prisão (serviços de acompanhamento de medidas em meio aberto, por exemplo), podem estar ou não associados à atividade do policial penal.
Apesar de sua importância, é preciso também compreender os limites de atuação desses profissionais: daí a necessidade de definição de um mandato estatutário, que compreenda seu caráter operacional para o funcionamento dos serviços, sua natureza civil, sua distinção com relação às atividades desempenhadas pelas demais polícias (não lhe competindo exercer atividades investigativas ou de prevenção de crimes em ambiente externo à prisão), os limites para uso de armamento letal e menos letal, sua distinção em relação às competências, habilidades e atitudes dos múltiplos perfis profissionais que exercem a gestão estratégica dos serviços penais (a qual também pode ser desempenhada por esses profissionais, embora não exclusivamente por eles).
No processo de regulamentação de carreiras, outro risco importante refere-se à “captura” ou mimetismo em relação a outras carreiras: um policial penal no nível dos estados certamente lida com desafios e rotinas muito distintos daqueles que compreendem as atividades dos policiais penais federais. Estabelecer essas diferenças e considerar a diversidade dos tipos de estabelecimentos de custódia e serviços abrangidos é essencial nesse processo.
Nesse sentido, com vistas a contribuir para esse debate, o Laboratório de Gestão de Políticas Penais, em parceria com uma rede de signatários, elaborou recentemente o documento intitulado “Regulamentação da Polícia Penal – questões centrais para qualificar a discussão sobre a polícia penal e a Política Penal”. É um convite para a mobilização de toda a sociedade em torno de algo que a atinge diretamente.