Reforma administrativa “urgente”, PL 2126/2024 e a saúde mental dos policiais civis
As forças que promoveram os vetos, como os governadores, e as forças contra o funcionalismo público, como o atual Comitê de Reforma Administrativa, não vão deixar o PL ser votado ou, se aprovado, efetivado
Lívio José Lima-e-Rocha
Investigador de Polícia e Professor de Gestão Pública na Polícia Civil do Estado de São Paulo. Associado sênior e conselheiro fiscal no Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mestre (FGV) e doutorando em políticas públicas (UFABC). Pesquisador no grupo de pesquisa em Segurança Pública e Cidadania (Mackenzie)
Reiteradamente neste Fonte Segura, temos defendido a necessidade de políticas públicas de saúde mental para os policiais O s**c*dio[i], infelizmente, não deixou de ser a maior causa de mortes de policiais. Já explicamos que a nova Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (LONPC), a Lei Federal nº 14.735/2023, não deu a devida atenção para o assunto[ii]: são poucos elementos sobre o cuidado com a saúde mental dos policiais civis. Uma redação tímida, sendo bem otimista, mesmo sendo o fator que mais afeta a vida dos policiais, civis ou não.
Atualmente, está em andamento o PL 2126/2024, que pretende resgatar diversos artigos vetados quando da sua publicação, incluindo alguns conexos com a saúde dos policiais civis, como o parágrafo único do art. 17, que versa sobre as unidades de saúde serem orgânicas às polícias ou gerenciadas por organizações sociais de saúde (OSs); indenizações por periculosidade e insalubridade em outro artigo e, não menos importante, dever de assegurar assistência médica, psicológica, psiquiátrica e social no art. 31.
Em que pesem as boas intenções dos parlamentares envolvidos no PL 2126/2024, devemos refletir sobre os fatores que jogam contra a aprovação e a efetivação, se aprovado, como a vontade dos governadores e a reforma administrativa em andamento o que, em último caso, demonstra que a saúde mental dos policiais civis brasileiros continua não sendo uma prioridade nem para o Executivo e nem para o Legislativo.
Começando pelo mais fácil: a falta de vontade dos governadores em priorizar a saúde mental dos policiais civis. Acompanhando o noticiário da época, não temos qualquer dificuldade em verificar o lobby que alguns govenadores fizeram para o veto de qualquer dispositivo que envolvesse aumento de despesa ou obrigação de fazer. É interessante que esse lobby contou com a conivência de diversos políticos policiais ou que fazem discurso de apoio aos policiais. Isso implica que, mesmo com o resgate dos trechos vetados, os governadores utilizarão os meios conhecidos para não os efetivar: não regulamentarão em seus Estados, não alocarão recursos, vão tramitar lentamente pareceres de órgãos consultivos e outras criatividades que vicejam quando o intento é prejudicar servidores públicos. A prática demonstra que não tem apelo ao Judiciário ou mobilização sindical que tenha sucesso para vencer essas manobras.
Enquanto os governadores são uma força externa contra o PL 2126/2024 e, indiretamente, contra a saúde mental dos policiais civis, a maior força contra esse PL está dentro do próprio parlamento: o Comitê de Reforma Administrativa instituído pelo atual presidente da Câmara[iii]. As intenções declaradas do comitê parecem aquela técnica de demissão chamada de sanduíche: comece e termine com elogios e deixe as críticas no recheio. No caso do comitê, elege duas ideias populares como vitrine, o fim dos supersalários e a cobrança de desempenho (ambas inefetivas e redundantes com elementos já previstos em lei), enquanto no recheio está a precarização, sucateamento, corte de benefícios, direitos e redução salarial do funcionalismo público. Note-se que as tramitações desse Comitê receberam a etiqueta de “urgência”, visando um relatório antes de 14 de julho. No contexto policial e de socorrismo, o conceito de urgência envolve risco de alguém morrer. Não parece ser o mesmo desse Comitê.
E aqui está o nosso ponto principal: a maioria dos vetos que o PL 2126/2024 deseja resgatar colidem frontalmente, a mais de 100 km/h com esses intentos do Comitê de Reforma Administrativa.
Tomemos como exemplo o resgatável parágrafo único do art.17, que se refere aos quadros da unidade de saúde. A redação fala em contração orgânica ou gestão por OSs. Se depender do Comitê de Reforma Administrativa, será uma letra morta, porque ele trabalha com redução de efetivo, o que contraria a contratação de profissionais de saúde e assistência social pelas próprias polícias civis, e a gestão por OSs será interpretada como privatização plena dos cuidados com a saúde dos policiais civis.
Outro exemplo são as verbas indenizatórias (periculosidade, insalubridade, local de difícil acesso, sobreaviso e outras) que o PL 2126/2024 deseja resgatar. O Comitê de Reforma Administrativa trabalha com a intenção de colocar um teto de 30% do salário para verbas indenizatórias. Supondo um policial civil que receba seis mil reais de subsídio: somando todas as verbas indenizatórias, já existentes ou possivelmente resgatadas pelo PL 2126/2024, receberá, no máximo, mil e oitocentos reais, ou seja, se um policial já receber um adicional de periculosidade e insalubridade que somem mil e oitocentos reais, não receberá diárias, sobreaviso, difícil acesso e qualquer outra verba indenizatória. Nem vamos falar do resgate do artigo que fala em aposentadoria integral e com paridade, algo que afronta não só o Comitê como todas as leis aprovadas contra as aposentadorias dos servidores públicos nos últimos anos.
Em suma, não queremos menosprezar os esforços dos parlamentares envolvidos no resgate dos vetos da LONPC que envolvem direitos merecidos e necessários dos policiais, especialmente aqueles que contribuem direta ou indiretamente para a saúde mental deles. Apenas procuramos apontar que as forças que promoveram os vetos, como os governadores, e as forças contra o funcionalismo público, como o atual Comitê de Reforma Administrativa, não vão deixar o PL ser votado ou, se aprovado, efetivado.