Múltiplas Vozes 03/07/2024

Reality da Irresponsabilidade: o trabalho policial não é show

O acompanhamento da rotina de batalhão da PM na capital paulista por youtuber norte-americano viola normas internas da corporação e expõe diversos problemas da atuação policial

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Ariadne Natal

Doutora em sociologia, pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF) e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Violência da USP

Na última semana, a Folha de S. Paulo publicou matéria a respeito de vídeo no qual o influenciador norte-americano Gen Kimura mostra a rotina do 18º Batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo no patrulhamento de comunidades na Brasilândia, zona norte da cidade. A presença de Kimura nas atividades policiais não apenas violou normas internas da corporação, mas também expôs diversos problemas na atuação policial.

Sem formação específica na área de comunicação, Kimura produz vídeos para o YouTube. Em seu canal, ele discute tópicos polêmicos, como racismo reverso e efetividade de ações afirmativas. No vídeo em questão, afirma que obteve autorização para participar e gravar as ações da Força Tática após uma competição de flexões com um capitão da companhia. A anuência não foi notificada ao comando, como seria de praxe. Essa autorização permitiu que Kimura e seu cinegrafista tivessem acesso a áreas sensíveis do batalhão, como o paiol de armamentos, e acompanhassem os policiais durante patrulhas, chegando até a manusear um fuzil de uso restrito da polícia. Tal permissividade não apenas viola as regras da instituição, mas também coloca em risco a segurança de todos os envolvidos.

O vídeo, que atingiu mais de 2 milhões de visualizações, trata as comunidades patrulhadas com sensacionalismo e preconceito, apresentando-as como locais de atrocidades e seus residentes como potenciais criminosos. Diversos procedimentos inadequados foram registrados: moradores são filmados sem autorização, ridicularizados em alguns momentos; domicílios são vasculhados sem mandado e um policial chega a apontar uma arma para crianças. A narrativa criada por Kimura reforça estereótipos negativos sobre essas comunidades, contribuindo para uma visão distorcida e preconceituosa da realidade local. Não surpreende, portanto, que as gravações mostrem também a insatisfação e a desconfiança dos moradores em relação à atuação policial, o que pode ser agravado por esse tipo de produção.

A questão racial também é abordada de forma problemática no vídeo. Kimura menciona o racial profiling ao notar que a maioria das pessoas abordadas era negra, em contraste com os policiais, majoritariamente brancos, mas minimiza a gravidade do problema. Em um momento, o capitão do batalhão nega a existência de racial profiling, oferecendo dados imprecisos para sustentar sua afirmação. Ele alega que a polícia e a população paulista são majoritariamente negras e, portanto, não haveria preconceito ou viés. Esses dados são imprecisos: 63% dos PMs paulistas são brancos (segundo a pesquisa “Perfil da Segurança Pública”) e 54% dos moradores de São Paulo se declaram brancos (Censo de 2022). Além disso, o capitão ignora pesquisas que indicam o viés racial nas abordagens policiais, como o fato de pessoas negras terem 4,5 vezes mais chances de serem abordadas do que brancas (pesquisa IDDD) e que negros são 64% dos mortos pela polícia no estado de São Paulo (Pesquisa Pele Alvo do CESEC).

Outro aspecto alarmante do vídeo é a cultura de violência revelada pelas declarações dos policiais. Em uma conversa com Kimura, o sargento Gabriel Luís de Oliveira comenta que mortes de criminosos são comemoradas com charutos e cervejas. Oliveira, que é réu por homicídio pelo Massacre de Paraisópolis em 2019, traz à tona uma subcultura violenta que glorifica a letalidade policial, contrastando fortemente com o discurso oficial da Secretaria de Segurança Pública, que nega tais práticas e afirma que excessos são rigorosamente responsabilizados.

A edição do material, focada apenas nas cenas consideradas mais emocionantes, oferece uma versão distorcida do trabalho policial, perpetuando uma imagem errônea da polícia como uma força em constante ação dramática, semelhante a um filme de ação, e deixando de lado o importante trabalho de prestação de serviço à comunidade. Ademas, a simples presença de Kimura pode influenciar o comportamento dos policiais, que podem sentir a necessidade de performar para a câmera ou oferecer conteúdo mais extremo para atender às expectativas de entretenimento do público. Pesquisas sobre reality shows policiais nos EUA mostram que a presença de câmeras pode levar a uma atuação menos responsável, com maior disposição a efetuar prisões por crimes menores para criar conteúdo atraente, o que é prejudicial tanto para a corporação quanto para a comunidade.

Após a repercussão do episódio, cinco policiais envolvidos foram afastados de seus postos e cumprirão serviços internos durante a sindicância em curso na Corregedoria, que apura as responsabilidades no caso e pode impor sanções administrativas. Além disso, o Ministério Público foi acionado pela Ouvidoria de Polícia para investigar a possível ocorrência de improbidade administrativa. Esses desdobramentos ressaltam a gravidade deste tipo de permissividade e indicam a urgência de medidas corretivas e de orientações claras para prevenir que o trabalho dos policiais se torne uma performance de entretenimento, desonrando a corporação e distorcendo seu propósito.

 

 

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