Múltiplas Vozes 14/05/2025

Queremos e precisamos de tudo

Queremos e precisamos de mais mulheres no poder. Não devemos escolher. Devemos perseguir tudo, sempre. Só assim o Brasil caminhará rumo a ser o país que suas cidadãs merecem

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Manoela Miklos

Pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A troca na liderança do Ministério das Mulheres não pegou ninguém de surpresa. Por meses a imprensa ventilou nomes e noticiou a vontade do presidente Lula substituir Cida Gonçalves. Hoje o Ministério das Mulheres tem nova líder: a ministra Márcia Lopes.

Cida Gonçalves e sua equipe se provaram competentes e dedicadas desde o governo de transição até seu último dia no cargo. A agora ex-ministra desempenhou papel importantíssimo na 69ª Conferência da ONU sobre a Situação da Mulher, em março. Foi uma voz feminista e lúcida num contexto hostil, vertiginoso, marcado por algo, como diz nossa grande intelectual feminista Sônia Corrrêa, que transcende blacklashes. Temos sido alvo de, nas palavras dela, um juggernaut: lutamos contra uma força impiedosamente destrutiva e imparável. Frente à distopia, soube conduzir a delegação com competência. Com a mesma competência e o mesmo compromisso, liderou uma pasta dotada de poucos recursos e com um grande problema nas mãos: agir para que as brasileiras vivam sem medo, vivam com qualidade. Vivam.

Mas, na política – em especial, quando uma eleição se avizinha – competência e compromisso são apenas um pedaço da história. São muitos os elementos a serem acomodados numa alquimia complexa. O presidente Lula deve ter olhado para as cartas que tem na mão e deve ter entendido que este era o melhor jogo para pôr à mesa.

Márcia Lopes, a nova ministra das Mulheres, chega com um currículo potente. Foi ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e deu contribuições relevantes para programas que revolucionaram o país, como o Bolsa Família. Tudo indica que, apesar do curto tempo que terá, tem inteligência e conhecimento para fazer uma gestão que nos orgulhe. Os números que constam da mais recente pesquisa de vitimização do FBSP – Visível e Invisível: Vitimização de Mulheres no Brasil – não deixam dúvidas a respeito da magnitude do problema da violência contra meninas e mulheres e dão conta de um Estado que tem portas abertas, mas em que mulheres em situação de risco têm medo de cruzá-las. Os dados mais recentes nos dizem que a maioria das mulheres vítimas de violência grave nos últimos doze meses afirma não ter feito nada diante da agressão sofrida. Além disso, a esmagadora maioria das mulheres afirma que sofreu agressões diante de testemunhas e ¼ afirma que sofreu agressão diante dos filhos. Estamos diante de um quadro crítico e a ministra Márcia Lopes tem tudo para dar uma contribuição significativa a esta agenda, independentemente do pouco tempo que terá.

Resta ao movimento de mulheres torcer por Lopes e seu time, se dispor a ajudá-la sempre que possível e cobrá-la sempre que necessário. Como deve ser nas relações entre governo e sociedade civil organizada.

A dança de cadeiras era certa. O que surpreendeu foi a cobertura do tema, realizada sobretudo por homens. Em muitos veículos, o que se viu foi um debate raso e preocupante. Comentaristas, por exemplo, gastaram horas em diversos telejornais dizendo que o Ministério das Mulheres não deveria existir. Que pesquisas de opinião conduzidas em períodos eleitorais costumam mostrar que mulheres se preocupam com saúde e educação, portanto bastava ter políticas públicas voltadas às mulheres, independentemente do gênero do tomador de decisão com a caneta na mão. Houve até jornalista progressista dizendo que o melhor curso seria acabar com o Ministério das Mulheres e criar um Ministério da Família. Sem notar, quero crer, que soava como a senadora Damares Alves. Acompanhar a cobertura do desenrolar dos fatos no Ministério das Mulheres demanda que façamos soar dois alertas.

Primeiro, é importante combater com veemência a noção de que mulher e família são noções naturalmente intercambiáveis. Ela escamoteia uma inverdade perigosa: a de que toda mulher é filha e será mãe, um indivíduo que se realiza no seio familiar. Daí a ideia de que políticas públicas que beneficiem famílias naturalmente beneficiam sobremaneira as mulheres. Não há uma brasileira. Há brasileiras. Algumas cabem dentro dessa caixinha, outras não. Papeis de gênero são construções sociais, a ideia de família também o é. E tais constructos sempre, sem erro, reservam à mulher um papel de subalternidade. A engrenagem que assegura que reifica essa realidade é a misoginia. As condutas informadas pela misoginia que comunicam esse status subalterno é o machismo. O fato haver formadores de opinião, à direita e à esquerda, que sugeriram, ao comentar a troca de ministras, a extinção do Ministério das Mulheres e a construção de um Ministério da Família como solução mais adequada para o país carrega consigo tamanho machismo que, por si só, já justifica a necessidade da existência do Ministério das Mulheres.

O segundo alerta importante diz respeito ao falso dilema que está embutido em comentários deste tipo. Para muitos – e para poucas – temos que escolher entre opções mutuamente excludentes: ou temos um Ministério das Mulheres, ou batalhamos por políticas públicas que beneficiem mulheres à despeito do gênero de quem desenha e executa tais políticas; ou lutamos por mais mulheres em espaços relevantes nos três poderes, Não é verdade. Queremos e precisamos de tudo isso.

Sim, queremos e precisamos de uma pasta que olhe para o machismo, para a misoginia, para a violência contra a mulher. De modo interdisciplinar e interseccional. Sim, queremos e precisamos de políticas públicas voltadas para as mulheres propostas e encampadas por todas as pastas – sejam elas lideradas por mulheres ou não. E sim, queremos e precisamos de mais mulheres no poder. Não devemos escolher. Devemos perseguir tudo, sempre. Só assim o Brasil caminhará rumo a ser o país que suas cidadãs merecem.

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