Tema da Semana

Queda do número de homicídios exige cautela

Causas da diminuição da quantidade de assassinatos estão mais ligadas a políticas públicas locais e regionais, a tendências demográficas e à dinâmica própria do crime organizado do que a um suposto plano nacional de combate às mortes violentas

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Betina Warmling Barros

Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS), Mestre em Sociologia (UFRGS), Doutoranda em Sociologia (USP) e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

David Marques

Coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

O ano de 2021 foi de muitas vidas perdidas sem necessidade no Brasil. A pandemia de coronavírus, somada ao descaso do poder público, sobretudo em relação às ações do governo federal, tirou a possibilidade de um futuro para centenas de milhares de brasileiros e brasileiras. No que diz respeito aos crimes violentos letais intencionais – homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte – o cenário também foi de perdas que seriam evitáveis. Em 2021, foram 41.010 vítimas de mortes violentas no país.

Os dados foram divulgados na última segunda-feira (22) pelo Monitor da Violência, parceria entre o G1, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP, que objetiva mapear os principais índices criminais do país. O número total representou uma queda de 7% em relação ao ano anterior, o que significou, portanto, um total de 3.049 mortes a menos em 2021 e uma taxa de 19,2 vítimas a cada 100 mil habitantes. Isso significa que, em 2021, chegou-se ao menor número de mortes violentas desde 2007, quando o FBSP iniciou a sistematização anual do dado.

Se a queda do total de mortes violentas não deixa de ser uma boa notícia, alguns sinais demandam cautela. Um primeiro ponto de atenção é que a série histórica dos dados indica que o resultado de 2021 significa apenas uma retomada ao patamar que já havia sido alcançado em 2019, quando foi contabilizado um total de 41.978 mortes violentas. Vale lembrar que, em 2020, mesmo durante a vigência de medidas de isolamento social que diminuíram a circulação das pessoas em alguns períodos do ano, o total de mortes violentas do país cresceu em torno de 5%.

Um segundo ponto de atenção é que, nesse total de mais de 41 mil vítimas, não estão contemplados todos os homicídios dolosos causados em razão de intervenção policial. Alguns estados incluem esses dados no total de homicídios, enquanto outros optam por apresentar os índices de forma desagregada. Segundo os dados do Monitor da Violência, apenas em 2020, somaram-se 5.660 mortes causadas pelas forças policias, sem contabilizar os dados de Goiás.  No Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, divulgou-se que o total de mortes dessa natureza para o ano de 2020 em todo o país foi de 6.416 vítimas.

Além disso, uma das razões que explicam a melhora do cenário no último ano, já identificadas em outros textos de análise publicados nesta semana, é a própria profissionalização do mercado de drogas brasileiro e o consequente apaziguamento do conflito de facções que chegou a patamares muito elevados entre 2016 e 2017.  Ou seja, em parte, a queda é responsabilidade de atores sobre os quais o poder público e as forças de segurança possuem influência apenas colateral. Assim, se, por ora, a forma como os grupos criminosos estão configurados auxilia no aprofundamento da diminuição dos homicídios, essa situação pode muito rapidamente ser revertida, caso a dinâmica como atuam as organizações do tráfico de drogas se transforme.

Outra razão explicativa para a queda dos números que vem sendo apontada é a própria mudança demográfica da população brasileira, que cada vez menos é composta por jovens, os quais compõem a maior parte de vítimas de homicídios no país. Trata-se, portanto, de outro fator alheio a uma ação mais direta em termos de governança pública para o combate às mortes violentas, sejam elas em nível estadual ou federal, o  que não significa que tais ações não existiram.

Algumas políticas estaduais focadas na redução dos homicídios se mostraram eficazes a ponto de incidir nas dinâmicas da violência letal desses estados. O Pacto Pela Vida, em Pernambuco, o Estado Presente, no Espírito Santo, o Ceará Pacífico, no Ceará, e o Fica Vivo!, em Minas Gerais, são alguns exemplos de projetos que buscaram integrar ações repressivas e preventivas. Na medida em que os governos estaduais são responsáveis por, em média, 80% dos gastos feitos na segurança pública do país, é evidente que as políticas executadas nas unidades federativas ganham muita relevância na compreensão dos índices de mortes violentas no país.

Partindo para uma análise mais detida a respeito dos totais de mortes em cada região do país, observa-se um panorama bastante diverso a depender de onde se olha. Na série histórica mais longa (2007-2021), as regiões Norte e Nordeste apresentaram aumento dos valores totais de vítimas de 27,2% e 17,3%, respectivamente, enquanto nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, os números caíram em 25,7%, 35,2% e 17,3%. No cenário mais geral das últimas duas décadas, portanto, tem-se um deslocamento das mortes violentas do eixo Sul-Sudeste, para as regiões Norte e Nordeste, o que já há algum tempo vem sendo afirmado nas análises realizadas no Anuário Brasileiro de Segurança Pública e no Atlas da Violência.

Especificamente no último ano, apenas a Região Norte apresentou aumento nas mortes violentas, de em torno de 10%. Todas as demais regiões tiveram queda no número total de homicídios, com destaque para o Centro-Oeste, onde a variação foi de -13,3%. Em relação aos estados, 20 apresentaram redução no total de mortes violentas, sendo que as quedas mais acentuadas ocorreram nas UF’s onde as mortes haviam crescido muito entre 2015 e 2017. No Acre, caiu 38% o número de assassinatos, em Sergipe, a redução foi de 26,1%, no Distrito Federal, a queda foi de 20,5%. No Ceará e em Goiás, houve redução da ordem de 18,3%.

Por outro lado, os estados nos quais se observou crescimento dos totais de mortes violentas foram Amazônia (54,2%), Amapá (19,1%), Piauí (11,0%), Roraima (10,4%), Rondônia (7,1%), Paraíba (0,4%) e Pará (0,3%).  Sete desses estados se encontram na região Norte, ainda que o aumento no Pará possa ser entendido como estabilidade.

O cenário da violência na região Norte vem se tornando um ponto de atenção central, dado o incremento de conflitos por disputas de terras e riquezas do solo, como madeira e terra, além da intensa presença de facções do crime organizado e de disputas entre elas pelas rotas nacionais e transnacionais de drogas que cruzam a região. Em conjunto, esses fatores têm contribuído para a elevação das taxas de homicídios e mortes violentas intencionais no Norte, conforme se apurou na publicação do FBSP Cartografias das violências na região amazônica.

Assim, se a diminuição dos homicídios nunca deixa de ser uma boa notícia, o país ainda se encontra em patamar muito elevado de mortes violentas em comparação com o cenário mundial. De toda forma, é importante que se compreenda melhor os fatores explicativos para a queda, que estão vinculados a variáveis diversas, como a estruturação das políticas públicas locais ou regionais, as tendências demográficas, além da dinâmica própria do crime organizado, do que a um plano nacional de combate às mortes violentas.  Esse cenário, somado ao alto nível de instabilidade da região Norte do país, coloca vírgulas importantes no resultado positivo de queda dos números. Atentar-se a essas vírgulas parece ser o caminho para que a notícia de que há menos homicídios no país deixe de ser apropriada por quem pouco ou nada fez para esse resultado para se tornar consequência de uma política pública consolidada e sistemática de priorização do combate à violência letal no Brasil.

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