Múltiplas Vozes 25/10/2023

Quando uma normativa vira violação: uma análise sobre a Instrução Normativa 014/2023 da SUSEPE/RS

Algumas diretrizes são necessárias para o ingresso nas casas prisionais; contudo, a problemática se dá quando uma regulamentação nasce sob o discurso da padronização, mas repleta de violações, o que torna evidente a hierarquização normativa, revelando a ausência de interesse no diálogo pelo poder público, sobretudo pela administração penitenciária, explicitando uma sanha punitiva

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Ana Carolina da Luz Proença

Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS, bolsista CAPES, e mestra em Direito e Sociedade pela Universidade La Salle (Canoas-RS), integrante do GPESC – Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança Pública e Administração da Justiça Penal

Rowana Camargo

Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Mestra em Ciências Humanas pela UFFS. Pesquisadora bolsista da CAPES. Professora. Advogada

Uma normativa emitida pela Superintendência de Serviços Penitenciários (SUSEPE) vem causando discussões, indignações e manifestações no estado do Rio Grande do Sul.  A Instrução Normativa nº 014/2023 trouxe modificações e exigências após analisadas as proposições feitas pelos servidores penitenciários em prol da atualização da Portaria nº 160/2014, que regulamenta o ingresso nos estabelecimentos prisionais, assim como foram incluídas considerações feitas por outras instituições e profissionais vinculados ao sistema de justiça.

Dentre tais mudanças que afetaram os familiares, pode-se citar as limitações das cores de roupas para ingresso nas casas prisionais, o que causa prejuízo e dificuldades principalmente para quem não tem condições financeiras; limitação da visita de crianças menores de seis meses, que passam a ter o encontro assistido e de apenas 30 minutos; crianças e adolescentes visitando seus pais apenas no pátio (sendo que o Estado não oferece condições estruturais para pátios expostos ao sol, chuva e frio); retirada de um dia na entrega das sacolas, o que causa a diminuição da assistência familiar que garante a sobrevivência de muitos apenados.

As barbáries não param por aí. O texto determina, também, que crianças deverão trocar as fraldas na presença de agentes, assim como idosos que as utilizem por motivo de saúde. Mulheres e adolescentes menstruadas deverão realizar a troca de absorvente na presença de agentes. Membros de algumas instituições como, por exemplo, o Ministério Público, disseram que tal prática não era uma novidade ou um problema, pois tal conduta já era realizada em muitas prisões, o que enseja a concepção de que a violação da dignidade não se tornou contestável, mas sim banal aos olhos de quem sequer vive e/ou sofre diretamente com tais práticas.

De fato, são necessárias diretrizes para o ingresso nas casas prisionais; contudo, a problemática se dá quando uma regulamentação nasce sob o discurso da padronização, mas repleta de violações, o que torna evidente a hierarquização normativa, revelando a ausência de interesse no diálogo pelo poder público, sobretudo pela administração penitenciária, explicitando uma sanha punitiva. As justificativas, feitas por alguns, vão na linha da necessidade de controle estatal perante a atuação das organizações criminosas e da própria segurança contra os/as visitantes.

Se, por um lado, há necessidade de uma nova normativa regulamentadora para o ingresso nas prisões que vise uma padronização nos procedimentos, por outro também há a urgência da discussão sobre uma maior fiscalização em relação aos policiais penais, para que as reclamações de violações e maus-tratos também sejam acompanhadas, devidamente apuradas e corrigidas na medida do possível. Para o lado mais fraco da história, a dignidade é sempre alvo de luta, é preciso dizer o óbvio: não podemos tolerar as violações de direitos dos familiares do cárcere, em razão da ineficiência estatal em prestar um serviço público.

As regras impostas afetam também o Poder Judiciário e seu papel fiscalizador, tentando restringir o acesso dos magistrados aos estabelecimentos. Devido ao ocorrido, em 14 de agosto de 2023, a Associação do Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS) manifestou sua objeção ao texto da normativa, reforçando a necessidade de diálogo para solução. Em nota, deixou clara a discordância com o Art. 88, que condiciona o ingresso nas casas prisionais de integrantes dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, representantes da OAB e do corpo diplomático de organismos nacionais e internacionais, limitando o acesso somente depois de prévio pedido escrito e fundamentado para o ingresso.

É necessário (re)lembrar que a Constituição Federal e a Lei de Execução Penal (LEP) nº 7.210/84 asseguram o livre, amplo e irrestrito acesso para o exercício de seus poderes e deveres de fiscalização e inspeção – além da interdição quando necessária – das prisões. Mais uma vez a normativa demonstra desrespeito aos direitos e garantias constitucionais, ignorando a necessidade de erradicação dos riscos de prejuízos aos direitos – principalmente – dos condenados, inclusive porque o Estado de Coisas Inconstitucional das prisões brasileiras já foi reconhecido pelo STF por oportunidade do julgamento da ADPF 347.

É importante destacar que o objetivo aqui não é defender uma ausência de normas e cuidados para o ingresso nas casas prisionais, mas que sejam criadas com responsabilidade e eficiência à luz dos parâmetros legais.

A Defensoria Pública do estado já obteve liminar em dois habeas corpus coletivos, perante a 1ª VEC de Porto Alegre e a VEC Regional de Passo Fundo, para suspender parte da normativa que viola direitos humanos, nas casas prisionais abrangidas por aquelas Varas. O reconhecimento das violações dos visitantes, assim como dos reclusos, mesmo que ainda em sede liminar, revela a ausência de diálogo entre o Judiciário e o sistema penitenciário, o que é essencial para a administração desse contingente de pessoas contra quem incide a mão estatal, agravando ainda mais o processo de vulnerabilização.

Assim, é preciso ter atenção às práticas fetichistas da punição que se travestem de um caráter protetor, mas que comumente são calcados em crenças atreladas a concepções de gestão de segurança pública baseadas no recrudescimento do sistema penal e penitenciário como instrumento de salvaguarda à nação, sem qualquer consideração mais profunda sobre os processos de criminalização e as interações sociais que os constituem.

A questão penitenciária exige complexas reflexões e ações cautelosas que estejam atentas às costumeiras violações de direitos tanto dos/das reclusos/as, quanto dos/das familiares/visitantes. Por isso, o diálogo entre as instituições e com aqueles que diariamente sofrem as agruras de um sistema penitenciário que reconhecidamente possui um “Estado de Coisas Inconstitucional”, parece ser a única maneira de construir práticas e ações que observem o necessário disciplinamento, mas, ao mesmo tempo, não violem (ainda mais) os direitos daqueles/as que já estão sob o controle estatal.

Que esta breve análise sirva de convite para uma resistência coletiva, imprescindível ante as violações de direitos humanos constatadas na Instrução Normativa nº 014/2023, evitando-se, assim, que práticas inaceitáveis sejam normalizadas, reforçando que a restrição de liberdade não é aval para (mais) violências. É preciso ainda avançar muito na garantia da dignidade dos/as reclusos/as e de seus/suas familiares e nas questões de segurança pública.

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