Fabiana Leite
Integrante do LabGepen. Mestre em educação pela Universidade Estadual de Minas Gerais
Noites Alienígenas. Título sugestivo de uma obra que se destacou em 2023 e levou cinco prêmios no Festival de Gramado, incluindo Melhor Filme.
De uma sala de cinema em um fim de tarde de domingo, da capital do país, aos poucos me desloquei para uma Amazônia contemporânea, na periferia de Rio Branco, onde a história se desenvolve. O filme é baseado no livro de Sérgio de Carvalho, que também dirige e assina o roteiro com Camilo Cavalcanti e Rodolfo Minari, sendo considerado o primeiro longa-metragem rodado no estado do Acre.
Há traços de um realismo fantástico na narrativa que sugere, já antes induzidos pelo título, a possibilidade de que extraterrestres apareçam na tela em algum momento, perspectiva a nós apresentada pelo protagonista Alê, interpretado por Chico Díaz. Alê possui uma visão mística sobre a existência, acredita que haja vida além da Terra e procura esses sinais.
Em tempos de facções, Alê é démodé. Um pequeno comerciante local de drogas, usuário de substâncias para a expansão da consciência, a perdoar a dívida dos que batem à sua porta, um tipo quase paternal com os jovens que o circundam, crescidos sem pai. Diferentemente das conexões positivas que ele acredita poder estabelecer de maneira holística com seres extraterrestres, na trama os estrangeiros são seres humanos como ele, advindos da região sudeste com as novas dinâmicas do tráfico.
Alê se verá abduzido por noites obscuras, nas quais o sangue de jovens cotidianamente escorre, nonsense. E será ele impelido a enfrentar tal absurdo para salvar um jovem amigo, em um confronto em que a sua palavra, o grito de um único ser, sequer ecoa em frente a um ajuntamento de corpos jovens fortemente armados, que veem aquele como um velho estorvo. Como no mito da Torre de Babel, ali o alienígena parece ser ele mesmo, Alê, um quase suicida a defender a vida numa língua ininteligível.
Em uma mecânica que parece alheia a qualquer racionalidade, pequenos traficantes e usuários transitam numa não rara circularidade onde os mesmos corpos que ora se empoderam, comandam e matam, ora se viciam, assujeitam e morrem, todos presos na mesma teia, numa espiral a engrossar as estatísticas dos jovens assassinados nas páginas do jornal, dia após dia. Ao se expandir pela região norte do país, toda essa dinâmica do tráfico já naturalizada na região Sudeste se alastra agora entre as comunidades tradicionais indígenas. Ali, a ancestralidade dos povos tradicionais persevera e subsiste a uma estrutura socioeconômica que insiste em guerrear com a floresta e seus povos.
Sim, estamos falando de guerra. Uma guerra direcionada aos povos originários deste continente. Mas não somente. Há uma guerra direcionada também contra o povo preto que foi arrancado da sua terra e trazido escravizado para as Américas. Não coincidentemente, os jovens negros são os que mais morrem no Brasil hoje, assassinados pelas mãos da polícia. Na real, o Brasil está em guerra civil há décadas, dado o número de assassinatos por ano, considerando os parâmetros internacionais, e isso se deve em grande medida à política proibicionista[1]. A lógica institucional colonialista se atualiza todos os dias na chamada “guerra às drogas”, que não se cansa de matar negros e indígenas. A guerra às “drogas” é cínica! Uma verdadeira falácia, uma estratégia de morte direcionada a populações específicas alçadas à condição de inimigo pelo Estado.
A construção de uma “identidade criminosa negra” tem sua origem no processo colonial brasileiro e na invenção de tipos de ilícitos criados após a abolição para assujeitamento, aprisionamento e morte de pessoas negras. Aqueles que conquistaram o direito de liberdade com a abolição passam a sofrer os processos de criminalização. Toda a estrutura de poder colonial se desloca agora para o vigiar e punir no pós-abolição e a afirmação da “periculosidade” ganha em escala com a criminalização das drogas.
A criminalização das drogas coincide com os processos de criminalização dos negros no Brasil. Segundo Deise Benedito, “de Mercadoria no Tráfico Transatlântico de Escravos à condição de ‘traficantes’, e de dependentes químicos, é possível observar que a população negra e jovem foi a mais atingida, no que se refere à violência perpetrada pela “guerra às drogas”[2]. Em 1799 se dá a proibição do cultivo do cânhamo, uma planta pertencente à espécie Cannabis, cultivada pelos escravizados para a produção de tecidos, emprego medicinal e psicoativo. O uso de maconha pelos africanos vindos de Angola, assim como a coca pelos povos indígenas na região dos Andes, eram culturais, e a proibição dessas substâncias se relaciona às práticas coloniais de controle e genocídio de ambos os povos. A condição de traficados se converte em condição de traficantes.
Os indicadores de homicídios que se constituem a partir da criminalização e guerra às drogas é fruto das violências históricas perpetradas pelo Estado contra os povos negros e indígenas no Brasil, o álibi perfeito para que o poder institucionalizado e armado siga encarcerando e matando a população jovem, negra, indígena e periférica neste país.
Estudos no mundo inteiro demonstram que a redução das violências e homicídios em outros países aconteceu quando a própria violência perpetrada pelo Estado, através dos processos de criminalização, foi repensada, por meio da descriminalização do uso e comércio de entorpecentes, políticas de redução de danos, regulação e legalização dos mercados. Não se combate a violência com mais violência. O punitivismo é comprovadamente ineficiente para a redução do consumo ou do tráfico, ao mesmo tempo em que é o responsável direto pelas violências institucionais, crescimento do encarceramento e morte de jovens no Brasil e em outros países que ainda seguem o modelo proibicionista.
O Índice Global de Políticas sobre Drogas, lançado em 2021 pelo Consórcio para a Redução de Danos, uma aliança de organizações comunitárias e da sociedade civil em colaboração com especialistas do mundo acadêmico, indica que, dos 30 países estudados para este índice inaugural, a Noruega aparece na melhor situação e no pior cenário encontra-se o Brasil. O estudo mede a eficácia das políticas em curso no mundo para a proteção e direitos das pessoas e adota como parâmetro as recomendações básicas da ONU a partir de 75 indicadores como dimensões relacionadas à justiça penal, saúde, redução de danos e acesso a medicamentos.
Estudos publicados pelo IPEA[3] nos apresentam que, do total de mortes violentas intencionais, a parcela de óbitos associadas ao proibicionismo das drogas no Brasil chegou a 34,3% em 2021. Pesquisa publicada pela mesma instituição agora, em 2023, aponta que 30% dos réus processados por tráfico nos tribunais estaduais indicaram a destinação da droga para o uso; enquanto 49% dos réus afirmaram serem usuários ou sofrerem com dependência de drogas[4]. Ainda, de acordo com o Sisdepen (2023), cerca de 30% dos presos do Brasil respondem por processos relacionados à Lei de Drogas[5], o que corresponde a cerca de 180 mil pessoas presas.
Neste momento está em julgamento pelo STF a descriminalização do porte de maconha. Se o ínfimo limite de 25 gramas defendido pelo ministro Luís Roberto Barroso for aplicado no Brasil, 27% dos condenados por tráfico de drogas presos por apreensão de maconha estariam dentro deste limite e poderiam ser absolvidos[6]. Um passo importante foi dado na última semana, com a aprovação da Proposta de Súmula Vinculante 139, para fixar o regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por alternativa à prisão quando reconhecida a figura do tráfico privilegiado. Mas precisamos caminhar para a descriminalização, urgente!
O filme Noites Alienígenas descortina diversas camadas da trágica política de drogas do país, que busquei apontar neste texto, com uma sensibilidade que se pode sentir na pele dos personagens e se estende da tela até nós, de uma maneira que tão bem o cinema, com sua magia, consegue retratar. Assistindo ao filme, a pergunta que me veio várias vezes foi se é possível enfrentarmos e superarmos a cínica política proibicionista e reescrevermos o nosso caminho, para não repetirmos os mesmos erros e violências que se estendem do passado ao presente. Será possível que possamos num futuro próximo, como numa película, contarmos uma outra história?