Profissão Polícia 17/04/2024

Profissionais de Segurança Pública e Direitos Humanos: quando os garantidores se reconhecerão detentores desses direitos?

Esse flagrante impasse se arrasta ao longo da história e pode ser que encontre freios com a formulação de novos olhares sobre o problema e o fomento de uma nova consciência sobre a importância do reconhecimento dos profissionais de segurança pública como parte singular da classe de trabalhadores do Brasil

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Juliana Lemes da Cruz

Doutora em Política Social pela UFF, Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, data de 1948. Seus princípios nortearam a formulação da Carta Magna brasileira de 1988, assim como o corpo dos documentos oficiais do país. Apesar disso, os Direitos Humanos (DH) precisam ser reafirmados e lembrados para que grupos específicos da sociedade tenham acesso a eles, consideradas as particularidades que os caracterizam.

Quando falamos de DH lembramos dos grupos vulneráveis e minorias (mulheres, crianças, idosos, indígenas, quilombolas, população LGBTQIA+, pessoas com deficiência…), reconhecidamente demandantes de políticas públicas voltadas à equidade de direitos. Além dos grupos mais lembrados, DH também se associam às relações de trabalho, especialmente no âmbito das instituições privadas e públicas. E também à forma como o Estado lida com as pessoas sob sua tutela (presas, apreendidas ou encarceradas, por exemplo).

Nesse rumo, ao longo do tempo, foram estabelecidas condições mais adequadas a cada segmento de trabalhadores, dentre os quais o reconhecimento de que devem ser consideradas as especificidades laborais, natureza da atuação, as horas trabalhadas, as pausas para refeição/alimentação e o tempo de descanso entre um turno de trabalho e outro, além da dignidade salarial. Tais elementos são essenciais para que os trabalhadores usufruam da vida em família, tenham tempo para atividades culturais/lazer ou mesmo dediquem-se à própria qualificação por meio de estudos de seu interesse.

O conjunto amplo desses elementos exemplificativos compõe o arcabouço dos DH, sendo condições reconhecidas pelos trabalhadores brasileiros como associadas aos direitos a que fazem jus, salvo algumas categorias, como a dos profissionais do campo da segurança pública, entre outras. A título de herança dos tempos de regime militar, o conjunto desses agentes públicos, além de não se ver como parte detentora dos DH, sinaliza-os como excludentes para a classe que representa.

Os princípios dos DH, apesar de teoricamente comporem os currículos das escolas de formação e as normativas institucionais, não têm sido capazes de alcançar a dimensão empírica/prática em proporção similar. Por outro lado, externamente às suas instituições, os DH são destacados como alheios ao universo da segurança pública via garantia de direito dos seus profissionais, tanto por parte da população, quanto das instituições que englobam o Sistema de Justiça.

O recorte sobre o alcance dos DH para essa classe nos orienta para três questões principais: 1) Os profissionais da segurança pública se reconhecem como detentores dos DH? 2) A população enxerga esses profissionais como detentores de DH? 3) As demais instituições, organizações e entidades enxergam os profissionais de segurança pública como detentores de DH? Na teoria, essas questões parecem simples e fáceis de responder, mas, na prática, revelam um contrassenso.

Em um primeiro momento, o cumprimento dos esforços para garantia dos DH para todos parece estar diretamente relacionado ao reconhecimento dos profissionais de segurança pública de que também fazem jus a esses direitos.

Afinal, um profissional que é submetido a cursos de formação ou treinamento que o levam à exaustão física e mental – para além do didaticamente necessário para a apreensão sobre a natureza da sua função –, sofre assédio moral sistemático, tem sua saúde mental comprometida e deve obediência a estruturas correcionais punitivas em sua essência, muito provavelmente, não reconhecerá os DH de outrem. Assim como tenderá a não respeitar o direito alheio, a parcela de profissionais que são deslegitimados por suas próprias instituições no exercício dos seus deveres – as mesmas que exigem o cumprimento das missões demandadas –, as quais se associam a outras instituições que têm antecipado punições e julgamentos sobre fatos que suspeitaram se tratar de violação de direitos humanos de outrem por parte dos agentes estatais.

Logo, percepções de profissionais que rechaçam DH como princípio podem ser interpretadas como reflexo do ambiente laboral no qual se constitui a sociabilidade grupal. Na mesma direção, negam os DH para sujeitos que compreendem estar em conflito com a lei – por vezes, reflexo do racismo estrutural – e naturalizam a condição de insegurança jurídica frente às decisões tomadas durante suas atuações, o que reforça a não identificação como detentores dos DH.

Nesse contexto, de um lado, a sensação de abandono vivenciada pelo profissional por parte da respectiva instituição – Estado – e, por outro, a possibilidade de vingança sobre aquele a quem se deve a garantia dos DH, por força da representatividade daquele mesmo Estado.  Trata-se de uma questão ampla e sistêmica, a ser resolvida em âmbito estatal, mas, na esteira de violações percebidas por aqueles trabalhadores, viola-se, quando se é possível, o direito do outro em consequência.

Nesse caminho, é relevante jogar luz sobre os eixos e diretrizes nacionais de “Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública” criados pela Portaria Interministerial SEDH/MJ nº 2/2010, que parece estar por muito tempo engavetada. O documento referencia aspectos fundamentais para se construir o que podemos chamar de nova consciência coletiva sobre Direitos Humanos voltados aos profissionais de segurança pública, incorporados aos seguintes eixos: 1. Direitos constitucionais e participação cidadã; 2. Valorização da vida; 3. Direito à diversidade; 4. Saúde; 5. Reabilitação e reintegração; 6. Dignidade e segurança no trabalho; 7. Seguros e auxílios; 8. Assistência jurídica; 9. Habitação; 10. Cultura e Lazer; 11. Educação; 12. Produção de conhecimentos; 13. Estruturas e educação em direitos humanos; e 14. Valorização profissional.

Esse flagrante impasse, que se arrasta ao longo da história, pode ser que encontre freios com a formulação de novos olhares sobre o problema e o fomento de uma nova consciência sobre a importância do reconhecimento dos profissionais de segurança pública como parte singular da classe de trabalhadores do Brasil.

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