Múltiplas Vozes 21/11/2024

Processos de radicalização e atentados

A ação de "Tiu França" em Brasília, no último dia 13, vem na esteira de um processo de radicalização político-ideológica iniciado há mais de 20 anos e que continua em curso. Para a segurança pública, o tema é muito desafiador, demandando recursos de inteligência e especial capacidade para detecção de ameaças reais

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Marcos Rolim*

Doutor em Sociologia pela UFRGS e professor do mestrado em Direitos Humanos na UniRitter (RS); membro-fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O episódio recente de atentado malogrado em Brasília merece uma análise para além da possibilidade de o autor ter vivenciado ou não transtorno mental como se cogitou – rápida e convenientemente, assinale-se. As informações disponíveis sugerem ato de terrorismo doméstico, independentemente de sua tipificação, vez que a lei brasileira antiterrorismo excluiu, equivocadamente, a motivação política. No caso específico, as explosões parecem expor um dos resultados de um processo de radicalização político-ideológica iniciado há mais de 20 anos e que está em curso[i].

Processos de radicalização constituem fenômeno social que é objeto de pesquisas em todo o mundo. Tradicionalmente, os estudos na área estiveram concentrados no extremismo de perfil jihadista, o que contribuiu para uma determinada invisibilidade do processo de radicalização promovido por grupos de extrema direita[ii]. A ocorrência de atentados terroristas domésticos em diferentes países, entretanto, alterou esse foco. Os dramáticos episódios na Noruega em 2011, com o atentado a bomba em Oslo seguido pelo assassinato de 69 membros da juventude trabalhista, produzidos por um fundamentalista cristão, chamaram a atenção para outro tipo de ameaça às democracias contemporâneas[iii].

Podemos compreender a radicalização como um “processo pelo qual uma pessoa passa a praticar ou a justificar o uso de ações políticas violentas contra um grupo e/ou para rejeitar valores igualitários e democráticos”[iv]. A ampla maioria das pessoas radicalizadas não cometerá atos de violência e, muito menos, atentados terroristas, mas estará disposta a justificá-los. Por isso, costuma-se também diferir processos de radicalização cognitiva de processos de radicalização comportamental[v].

Os processos de radicalização acabam por formar uma ecologia violenta com dinâmica própria, o que foi potencializado pelas interações on-line. Antes das redes sociais e da deep web, processos de radicalização dependiam de interações face a face, o que limitava a eficácia dos recrutamentos por grupos radicalizados. As interações on-line criaram um novo espaço social em que uma gramática de ódio é agenciada para pessoas em processo de radicalização por algoritmos, sem que as chamadas “Big Techs” de comunicação digital se movimentem para impedir esse desfecho. Visões conspiratórias e perspectivas apocalípticas do futuro[vi] concorrem para a radicalização, oferecendo aos sujeitos uma noção de urgência e gravidade que lhes facilita compreender a violência, incluindo a prática de atentados terroristas, como opções não apenas necessárias, mas “lógicas”.

Para a segurança pública, o tema da radicalização política é, por isso, muito desafiador, demandando recursos de inteligência e especial capacidade para detecção de ameaças reais. A primeira evidência a ser considerada diz respeito aos alvos preferenciais. Os estudos apontam que agentes públicos tidos como inimigos, destacadamente juízes, promotores, policiais e líderes políticos, são os mais visados; da mesma forma prédios públicos, delegacias de polícia, mesquitas, sinagogas, redes de energia, etc. As evidências mostram que atentados contra esses alvos por grupos radicalizados dispensam organizações estruturadas, comandos ou experiência militar. O comum, aliás, é que sejam cometidos por pequenas células e mesmo pelos chamados “lobos solitários” que agem sem comando, seguindo o conceito proposto pelo neonazista estadunidense Louis Beam de “resistência sem liderança” (leaderless resistance).[vii]

Processos de radicalização precisam ser interrompidos, o que demanda política pública de desradicalização capaz de orientar as ações dos agentes políticos, a começar pelo uso da palavra em espaços públicos. Ofensas e outras formas de tratamento desrespeitoso tendem a alimentar as espirais de ódio e aceleram os processos de radicalização. Pelo contrário, denúncias consistentes, oferta de evidências, debates regrados e processos de responsabilização cível e criminal costumam desestimular a radicalização. A desradicalização tem início a partir de algumas lideranças que rompem com o grupo radicalizado, ainda que mantendo posições ideológicas semelhantes. Reveses impostos aos grupos radicalizados, como a prisão de muitos de seus membros, favorecem processos internos de revisão de estratégias e podem inaugurar crises ideológicas.[viii]

*Autor, entre outros trabalhos de: “A Síndrome da Rainha Vermelha, policiamento e segurança pública no século XXI” (Zahar/Universidade de Oxford (UK) e “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris).
Notas
[i] ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021. PRADO, Michele. Tempestade ideológica: bolsonarismo, a alt-right e o populismo iliberal no Brasil. São Paulo: Lux, 2021.
[ii] KOEHLER, Daniel. Violence and terrorism from the far-right: policy options to counter an elusive threat. Amsterdã: International Centre for Counter-Terrorism; ICCT Policy Brief, 2019.
[iii] HEMMINGBY, Cato; BJØRGO, Tore. Terrorist target selection: the case of Anders Behring Breivik. Perspectives on Terrorism, v. 12, n. 6 p. 164-176, 2018.
[iv] MARWICK, Alice; CLANCY, Benjamin; FURL, Katherine. Far-right online radicalizat ion: a review of the literature. The Bulletin of Technology & Public Life, maio 2022, p. 14 (trad. livre).
[v] DZHEKOVA, Rosita et al. Monitoring radicalisation: a framework for risk indicators. Sofia: Center for the Study of Democracy, 2017.
[vi] RATHJE, Jan. Driven by conspiracies: the justification of violence among “reichsbürger” and other conspiracy-ideological sovereignists in contemporary Germany. Perspective on Terrorism, v. 16, n. 6, p. 49-61, dez. 2022.
[vii] MICHAEL, George. Leaderles resistance: the new face of terrorism. Defence Studies, v. 12, n. 2, p. 257-282, 2012.
[viii] RABASA, Angel et al. Deradicalizing islamist extremists. Santa Monica, CA: Rand Corporation, 2010.

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