Por uma ‘saidinha dos presos’ mais criteriosa
Presos com carreiras criminais consolidadas, com trajetória no crime organizado, ou que apresentam histórico de cometimento de crimes violentos sem o resultado morte, como nos casos de roubos e estupros, não devem ser contemplados com o benefício
Luis Flavio Sapori
Professor da PUC-MG e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Gabriela Almeida Sapori
Advogada criminal, Pós-Graduada em Ciências Penais pela PUC-MG
A controvérsia em torno das saídas temporárias de presos no regime semiaberto é oportuna, merecendo debate mais sensato e qualificado. A comoção provocada pelo assassinato do sargento da PMMG, Roger Dias da Cunha, é justificável e constitui caso que problematiza a aplicação do benefício previsto em Lei. Diversos segmentos da sociedade brasileira clamam pelo fim das saídas temporárias, argumentando que aumentam a insegurança pública ao colocarem em liberdade criminosos contumazes e violentos. Por outro lado, há os que defendem a manutenção desse benefício previsto na Lei de Execução Penal (LEP), entendendo que esse instituto jurídico favorece a gradativa reinserção social dos presos. Ambas as posições são defensáveis, a despeito do viés ideológico que as contamina no debate público. É possível, contudo, defender uma posição de meio termo que contemple a manutenção das saídas temporárias acrescida de critérios mais rígidos para sua concessão.
Para começo de conversa, os dados disponíveis evidenciam que as saídas temporárias têm funcionado com relativa estabilidade no que tange ao número de beneficiados quanto ao número de presos que evadem e não retornam à prisão. Conforme levantamento realizado pelo jornal O Globo[1], no período de 2019 a 2023 o Judiciário autorizou em média 34 mil saídas temporárias por ano em todo o território nacional, sendo que a média anual de evasão foi de 5 %. Analisando friamente tais números, pode-se concluir que não há motivo para acabar com as “saidinhas dos presos”. A taxa de retorno é bastante satisfatória e aqueles que evadem podem ser recapturados mediante operações policiais específicas. Além disso, a LEP estabelece que o benefício deve ser autorizado nos casos de visita à família, frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior ou mesmo participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social. Nesse sentido, o efeito potencial de ressocialização da medida é reforçado, diminuindo os riscos da reincidência criminal após o cumprimento total da pena.
Mas devemos considerar o outro lado da moeda. A despeito dos baixos níveis de evasão, os efeitos perversos para a segurança pública podem ser maiores do que se supõe. A taxa anual de 5% de não retorno dos beneficiados significa algo em torno de 1.700 presos em números absolutos e não sabemos quantos deles são recapturados pelas polícias ou retornam voluntariamente após a data prevista. Dependendo do perfil criminológico desses indivíduos evadidos, as saídas temporárias podem implicar aumento da incidência de roubos, furtos e homicídios em determinadas localidades. Casos como o que vitimou o sargento Roger Dias da Cunha em Belo Horizonte não são incomuns para quem lida no cotidiano da atividade policial. O autor do homicídio tinha trajetória criminal anterior bastante expressiva e matou policial durante perseguição após cometer um roubo porque “não queria voltar para a cadeia”[2]. Não sabemos quantas são as vítimas de crimes violentos cometidos por presos evadidos das saídas temporárias todos os anos, mas podemos conjecturar que são na maioria pessoas comuns, anônimas e que representam meros números nas estatísticas criminais.
Tendo em vista ambos os aspectos do fenômeno, faz-se necessário repensar o instituto das saídas temporárias na sociedade brasileira. Há um Projeto de Lei[3] em tramitação no Senado Federal nesse sentido, mas que determina sua completa revogação. Está parado na Comissão de Segurança Pública do Senado desde maio de 2023. De autoria do deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ), o PL já foi aprovado em plenário da Câmara dos Deputados em 2022. A solução não é acabar com tal benefício, dado que sua contribuição para o processo de reinserção social de presos é inegável. A alternativa mais sensata é realizar alteração da LEP de modo a prescrever critérios mais rígidos para a concessão das ‘saidinhas’.
Ao contrário do que muitos imaginam, a autorização da saída temporária não é automática. Tratando-se de um direito previsto na LEP, torna possível que os detentos em regime semiaberto possam sair do estabelecimento prisional por um período máximo de sete dias, renováveis até quatro vezes ao longo do ano. Está sujeita ao cumprimento dos requisitos previstos nos artigo 123 da LEP, de modo que é importante que o preso tenha boa conduta carcerária. Ademais, é necessário o cumprimento mínimo de 1/6 da pena, se o condenado for primário, e 1/4 se reincidente. É importante salientar que condenados por crimes hediondos com resultado morte não têm direito a esse benefício, conforme §2° do artigo 122. Merece menção ainda que a LEP autoriza o uso da monitoração eletrônica por parte do preso durante o período em que estiver fora da unidade prisional. Uma vez concedidas as saídas temporárias, serão impostas aos beneficiários algumas obrigações a serem cumpridas. Os detentos deverão fornecer o endereço onde reside a família a ser visitada ou onde podem ser encontrados. Durante o período noturno, devem recolher-se à residência visitada, sendo proibidos de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos semelhantes. Em caso de descumprimento de algum requisito, prática de fato definido como crime ou punição por falta grave, o benefício será revogado.
Como se constata, a legislação vigente já apresenta relativo rigor para concessão e aplicação das “saidinhas”. Contudo, não é suficiente. Faz-se necessário incrementar os requisitos a serem contemplados pelo magistrado quando da autorização da saída temporária. E, nesse sentido, o perfil criminológico do indivíduo deve ser considerado. Presos com carreiras criminais consolidadas, com trajetória no crime organizado, ou que apresentam histórico de cometimento de crimes violentos sem o resultado morte, como nos casos de roubos e estupros, não devem ser contemplados com o benefício. Além disso, é preciso que o magistrado leve em conta também os níveis de agressividade que caracterizam a personalidade do preso. Para tanto, é imprescindível a obrigatoriedade do exame criminológico. Por fim, pode-se aumentar o rigor para os presos reincidentes, exigindo o cumprimento mínimo de 3/5 da pena.
Ressalto que a mera alteração da LEP não significa a alteração imediata da realidade. O desafio seguinte é a implementação do que está prescrito na legislação. A gestão da pena de prisão na sociedade ainda é muito amadora, com pouca referência em procedimentos técnicos e conhecimentos científicos. Há deficiência de recursos humanos qualificados para a elaboração de laudos criminológicos, por exemplo. Há muito a ser feito na perspectiva da construção de um sistema prisional mais civilizado.