Por que homicídios (não) são elucidados no Brasil?
A taxa de elucidação de homicídios é um indicador que deveria ser buscado pelos órgãos de segurança, pois a falta ou a omissão de informações sobre ela tende a gerar desconfiança no trabalho das polícias, além de sentimentos de insegurança, desordem e injustiça na sociedade
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em ciências sociais/UNB. Cientista Político. Policial civil no Distrito Federal. Professor substituto no IPOL/UNB
O Brasil apresenta uma das maiores quantidades absolutas de homicídios do mundo, com média de 40 mil casos ao ano. Mas quantas dessas mortes são elucidadas? É uma pergunta complexa, visto que as informações sobre elucidação são incompletas, sem padronização e pouco divulgadas oficialmente. Em linhas gerais, dados sobre criminalidade no país ainda padecem de tratamento, ainda mais quando se referem a procedimento internos das corporações. Assim, praticamente não há transparência sobre como os homicídios são investigados e elucidados. Diante disso, qualquer taxa apresentada pode depender do que se está querendo demonstrar ou ocultar.
Nesse contexto, há taxas que mensuram, por exemplo, a parcela de autores apontados pela quantidade de ocorrências registradas. Assim, caso tenham ocorrido dez casos e em cinco deles tenha havido identificação de autores, chegamos a uma taxa de elucidação de 50%. Por outro lado, há taxas que consideram a elucidação só a partir dos casos que tiveram procedimentos instaurados e encaminhados ao Poder Judiciário. Logo, tendo como universo de análise a mesma dezena de casos acima imaginada, são levados em consideração para taxa de elucidação os casos cujos inquéritos tenham sido remetidos à Justiça. Assim, caso seis tenham apresentado essa condição e, se daquele total, cinco possuíam autoria, a taxa passa para 83%. Também há metodologias que consideram resolvidos casos que tenham resultado em indiciamento da Polícia Judiciária; outras reservam tal status àqueles que deram origem a recebimento da denúncia do Ministério Público. Existem ainda aquelas com critérios ainda mais restritivos. Para estas, resolvidos seriam os casos com sentença definitiva do Judiciário. Todas essas possibilidades impactam o que possa ser uma taxa de elucidação de homicídios.
Em termos de números, por exemplo, levantamento do Instituto Sou da Paz apontou que a taxa nacional foi de 35% em 2021, considerando a fase da denúncia do Ministério Público[1]. Por outro lado, a Associação de Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) alega que a taxa nacional seria de 67%[2], a partir de informações das polícias civis. Nessas taxas, o que se destaca é que há contingente expressivo de casos não elucidados. Pela taxa do Sou da Paz, cerca de 70% dos homicídios não são resolvidos; pela da Adepol, aproximadamente, 30%. Essa discrepância talvez se explique por diferenças metodológicas, mas, além disso, também tem a ver com particularidades de cada caso e como são enfrentados pelas polícias.
A taxa de elucidação de homicídios é um indicador que deveria ser buscado pelos órgãos de segurança, pois a falta ou a omissão de informações sobre ela tende a gerar desconfiança no trabalho das polícias, sentimentos de insegurança, desordem e injustiça na sociedade. Contudo, esse indicador praticamente é eclipsado pelas corporações como dado público, o que dificulta pesquisar a dimensão do trabalho policial no enfrentamento dos homicídios. Nesses termos, entre 2017 e 2022, segundo dados do Anuário de Segurança Pública[3], houve redução de aproximadamente 25% das mortes violentas intencionais. Agora, chegamos à pergunta: será que a queda foi acompanhada de uma alta nas taxas de elucidação dos casos? Ou seja, a aludida redução teve como uma das causas a maior efetividade das polícias na resolução dos crimes? Infelizmente, não há dados com séries históricas que possam estabelecer essa correlação.
No Distrito Federal, as mortes violentas intencionais saíram de 549 casos em 2017 para 291 em 2022, ou seja, redução de 47%, conforme dados de ocorrências policiais. Nesse período, a taxa de elucidação variou entre 62% a 74%, dependendo do ano apurado, segundo informe da Polícia Civil do Distrito Federal[4]. De todo modo, a menor quantidade de crimes não necessariamente foi acompanhada de uma maior taxa de elucidação, parecendo variáveis independentes. Assim, na Capital Federal, a cada ano cada vai se assomando um passivo de 30% dos casos de homicídio sem elucidação. Ora, mesmo com a queda da quantidade de mortes violentas intencionais, especialmente homicídios, permanece um contingente sem definição.
Diante disso, surgem outros questionamentos: por que alguns homicídios são elucidados e outros não? O que microdados de homicídios podem revelar? Pesquisas apontam fatores individuais, culturais, sociais, territoriais, organizacionais na definição da elucidação dos crimes. Por exemplo, um ramo teórico considera fatores discricionários nos quais policiais ponderam características sociais da vítima, como, por exemplo, comportamento e antecedentes[5]. Outro ramo trata de fatores não discricionários nos quais os casos de homicídio, por conta da gravidade, seriam tratados da mesma forma pelas polícias, independentemente das características das vítimas[6]. Nesse caso, o foco seria abordar elementos do crime, como tipo de arma, modo de execução. Também há outra linha de investigação que considera fatores multivariados na elucidação de homicídio. Quer dizer, impactariam na resolução do crime variáveis diversas, como interesses das corporações, características de autores e vítimas, questões legais e extralegais[7].
Analisar a elucidação de homicídios a partir dos ramos teóricos supracitados é relevante para entender o fenômeno. Numa abordagem discricionária, nos casos em que vítimas de homicídio tenham histórico criminal conhecido, as chances de elucidação seriam reduzidas. Por outro lado, numa perspectiva não discricionária, os policiais na investigação de homicídio tenderiam a mostrar mais resultados, seja por pressão da organização ou da sociedade. Mas, nas situações de mortes decorrentes do mercado de drogas e facções criminosas, as elucidações tendem a ser reduzidas, mesmo com o empenho das corporações. Numa perspectiva que leva em conta múltiplos fatores, como características das vítimas, tipos de armas e localizações dos fatos, mesmo que esses elementos sejam favoráveis, um fator como a desconfiança no trabalho das polícias pode impactar negativamente nas probabilidades de elucidação.
Esse debate teórico é importante para compreender o fenômeno do homicídio e caminhos para o seu enfrentamento. Mas o que as citadas teorias sugerem na prática? Num recorte de dados da Capital Federal, em 2024, observa-se que em homicídios com motivos relativos a drogas ou acerto de contas, a taxa de elucidação é de aproximadamente 55%. Por outro lado, em casos de motivos fútil ou torpe e passional, a taxa é de 87%[8]. Ademais, no primeiro trimestre de 2025, das 65 vítimas fatais de homicídio, 60% delas possuíam algum histórico de passagens na polícia, como autores ou vítimas. Do total de vítimas com passado criminal, até então 45% dos casos foram elucidados. De outra feita, das vítimas sem registros policiais, 67% dos casos apresentam elucidação. Com efeito, nota-se que particularidades das vítimas e circunstâncias criminais podem determinar a elucidação ou não do crime.
Como dito inicialmente, o Brasil é recordista em números absolutos de homicídio, mas destaca-se que, em geral, a quantidade de casos vem caindo. Ainda não se pode afirmar que essa redução decorre de uma maior efetividade do trabalho policial, devendo-se ao sucesso nas elucidações, por exemplo. Ademais, as taxas de elucidação de homicídio por parte das polícias carecem de transparência e são números que dificilmente passam num critério de qualidade de indicadores. Por tudo disso, pesquisas detalhadas sobre elucidação de homicídios no país ainda formam um campo repleto de desafios, desconhecimentos e incertezas.