Patrícia Trindade Maranhão
Pesquisadora Plena do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília; Pesquisadora Senior do Observatório das Migrações Internacionais da UnB
No último dia 5 de março, foi publicada a nova “lista suja” do trabalho escravo contendo 289 empregadores que submeteram ao todo 685 pessoas a condições análogas à escravidão. Considerada pelas Nações Unidas um dos principais instrumentos globais de combate à escravidão contemporânea, a “lista suja” é um cadastro criado por portaria interministerial que inclui nomes de pessoas físicas e jurídicas flagradas em fiscalizações do trabalho escravo. Somente após os empregadores se defenderem administrativamente em primeira e segunda instâncias seus nomes podem ser divulgados.
De empregadores domésticos a empreendimentos rurais e urbanos atuantes nos setores da pecuária, carvão e café, incluindo o trabalho escravo realizado pelos internos de uma casa de recuperação de drogados e alcoólatras, a última publicação da “lista suja” revela diferentes formas de escravidão contemporânea incidentes no Brasil, além da sua abrangência no território nacional. A inclusão do professor universitário Dalton César Milagres Rigueira, que submeteu a trabalhadora doméstica Madalena Gordiano a condições análogas à escravidão por 38 anos na cidade de Patos de Minas (MG), foi um marco. Desde a libertação de Madalena, ocorrida em agosto de 2020, houve aumento significativo no caso de denúncias de trabalho escravo doméstico e a consequente intensificação das ações fiscais para a temática, o que foi denominado o “efeito Madalena”, como afirmou Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho (idem). O “efeito Madalena” revela uma prática estabelecida, recorrente e de difícil acesso, dado seu caráter privado. O que permite a persistência dessas formas de cativeiro num contexto em que a escravidão foi legalmente abolida?
As definições sociológicas de escravidão contemporânea focam sobre critérios essenciais da escravidão e padrões mais amplos sobre os quais esses critérios agem através do tempo e das culturas. Desse modo, o essencial sobre a escravidão nos dias atuais é o controle exercido sobre uma pessoa, o que pode privá-la significativamente de sua liberdade individual, com o objetivo de exploração (Bales, 2012, p. 283)[1]. As formas de controle podem ser tão variadas quanto nossa imaginação permite. Podem ser objetivas e ostensivas, exercidas por diferentes formas de violência, como ameaças, vigilância, humilhações, maus-tratos, endividamentos financeiros crescentes e impagáveis ou pela retirada das condições básicas de sobrevivência no ambiente de trabalho. A forma de controle também pode ser subjetiva e não quantificável, como uma suposta obrigação de lealdade perante o/a patrão que imobiliza o/a trabalhador/a em situações extremamente abusivas e exploratórias. Essa lealdade muitas vezes decorre de uma dívida moral contraída por pessoas em extrema situação de vulnerabilidade social e econômica. A vulnerabilidade cria as condições materiais para que a oferta de trabalho, mesmo em situação precária, abusiva e exploratória, seja percebida como dádiva por quem a recebe. A escravidão ou o controle sobre os corpos e o trabalho das pessoas social e economicamente vulneráveis pode ser exercida na medida em que essa condição as destitui da liberdade de escolha sobre o trabalho a ser realizado e em quais condições desempenhá-lo. Da mesma forma, é essa vulnerabilidade que justifica a escravidão.
Por parte dos que utilizam essa mão de obra, a escravidão contemporânea tornou-se, desse modo, uma estratégia economicamente valorizada e socialmente aceita, pois implica o aumento do lucro do empregador pela diminuição dos custos de manutenção do/a trabalhador/a. Do mesmo modo, a pobreza crônica e a vulnerabilidade de diferentes grupos sociais criou um exército de reposição para a escravidão contemporânea. Quando o trabalho acaba, o/a escravizado/a pode ser facilmente substituído/a, tornando-se, assim, uma ferramenta de produção descartável.
No caso de trabalhadoras domésticas, como Madalena Gordiano, submetidas à escravidão contemporânea desde a infância, as formas subjetivas de controle são de difícil constatação ainda nos dias de hoje. O que muitas vezes dificulta o enquadramento da prática no artigo 149 do Código Penal Brasileiro, dispositivo jurídico que criminaliza a escravidão contemporânea no país. Além disso, a inviolabilidade do domicílio, direito fundamental assegurado pelo Artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal, restringe a possibilidade de fiscalização do ambiente doméstico, salvo em caso de flagrante delito, ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. A subjetividade da dívida moral aliada à aceitação social ampla de que pessoas vulneráveis são descartáveis, impedem a denúncia dessa forma de cativeiro, permitindo sua recorrência por tempo e espaços indeterminados, salvo em caso de situações gritantes de maus-tratos sofridos pela trabalhadora doméstica, a exemplo de Madalena, que ultrapassam os limites aceitáveis impostos no meio em que a prática ocorre.
O “efeito Madalena” parece revelar um avanço na visibilidade do tema, trazendo à tona uma prática persistente e perversamente familiar de injustiça, abusos e exploração. No entanto, sua divulgação não tem sido suficiente para superar práticas estabelecidas e recorrentes de escravidão contemporânea, realizadas no ambiente doméstico ou não, que mantêm uma estrutura social e econômica e que se imiscuem em relações de classe marcadamente desiguais.
[1] BALES, Kevin. (2012), “Slavery in its Contemporary Manifestations”. In ALLAIN, Jean (ed.) The Legal Understanding of Slavery. From the Historical to the Contemporary. Oxford, Oxford University Press, pp. 281-303.