PEC da Segurança Pública: uma omissão legislativa que perdura há 36 anos
A recente leitura de relatório na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados trouxe frustração e surpresa: o relator, deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE), suprimiu o artigo que atribuía à União o papel de coordenação do sistema por meio da edição de normas gerais
Reinaldo Monteiro
Guarda municipal de Barueri/SP, presidente da Associação Nacional de Guardas Municipais do Brasil (AGM Brasil) e do Instituto Nacional de Ensino, Pesquisas, Projetos e Estudos sobre Segurança Pública, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (INEPSP)
Eduardo Pazinato
Advogado, mestre em Direito (UFSC) e doutor em Políticas Públicas (UFRGS). Coordenador acadêmico da Nova Escola da Segurança Pública Municipal (NESP-M). Advogado integrante da diretoria jurídica da AGM Brasil, associado sênior do FBSP e pesquisador associado ao INEPSP
A Proposta de Emenda à Constituição nº 18 de 2025, conhecida como a “PEC da Segurança Pública”, representa um marco histórico ao propor a correção de uma omissão legislativa que perdura desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Por mais de 36 anos, o texto constitucional não atribuiu de forma expressa à União a competência para legislar sobre normas gerais de segurança pública, o que contrasta fortemente com as diretrizes normativas e federativas aplicadas para outras políticas públicas setoriais essenciais, tais como saúde, educação, previdência social e direito ao trabalho.
A PEC 18/2025 nasce, nessa perspectiva, como uma tentativa legítima de fortalecer constitucionalmente a organização do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), conferindo à União o papel de coordenadora do sistema por meio da edição de normas gerais, como já ocorre nos demais serviços públicos. Contudo, a recente leitura do relatório na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados trouxe frustração e surpresa: o relator, deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE), suprimiu o artigo que atribuía à União essa competência.
Essa decisão suscita um debate inevitável: por que a União pode legislar sobre normas gerais de saúde, educação e previdência social, mas é impedida de fazer o mesmo em relação à segurança pública? Qual o motivo dessa resistência? Trata-se de uma tentativa de manter o monopólio da segurança pública restrito a certas corporações, ou seria, talvez, uma estratégia para proteger interesses locais e preservar uma reserva de mercado?
A ausência de normas gerais compromete a efetividade e a unidade institucional do SUSP e obstaculiza a cooperação federativa do Estado de Direito brasileiro nessa área que é prioridade número 1 de todo brasileiro. Estados e municípios ficam à mercê de diretrizes fragmentadas e dispersas, o que dificulta a integração sistêmica entre os entes federativos e reduz, consequentemente, seu impacto no controle da criminalidade violenta e na prevenção das violências. Mais do que uma questão jurídica, trata-se de uma questão de governança e de garantia de concretização do direito social à segurança pública.
Em tempos de crescente violência e desigualdade, é essencial que o Estado brasileiro enfrente seus próprios paradoxos e adote uma lógica institucional coerente, integrada e harmônica com os demais direitos sociais já consagrados pela Constituição. Isso porque o direito à segurança pressupõe a segurança efetiva dos demais direitos fundamentais, e vice-versa.
A PEC 18/2025 deve ser, portanto, debatida com profundidade e responsabilidade, sem romantismos ou idealismos, considerando, sobretudo, o interesse de toda a sociedade brasileira ser atendida por um sistema de segurança pública moderno, profissional, integrado e eficiente, com regras claras, compromissos públicos e controle social. Retomar o texto original e garantir à União a competência para legislar sobre normas gerais não significa concentrar poderes, ou suprimir, em qualquer grau, a autonomia federativa dos demais entes (estados e municípios), mas assegurar coerência, padronização e efetividade às políticas públicas de segurança, evitando sobreposições institucionais e dispêndio de recursos públicos.
Ademais, a PEC proposta não fere a autonomia dos entes federados; apenas reconhece, disciplina e organiza constitucionalmente essa mesma autonomia, que é necessária, indeclinável e característica de uma república federativa de natureza trina, como a brasileira. Na verdade, nem poderia feri-la, já que se trata de cláusula pétrea. Inobstante, boa parte dos governantes, políticos e gestores ainda ignora as potencialidades da segurança pública municipal.
Ora, se compete constitucionalmente ao município a tarefa de “organizar e prestar diretamente serviços públicos de interesse local” e a segurança pública constitui matéria de interesse local, é óbvio, por silogismo lógico, concluir que também ela, a segurança pública, é competência dos municípios. Daí porque a atualização legislativa trazida pela PEC nº 18/2018, sopesando e harmonizando as atribuições do ente federado municipal previstas nas Leis Federais nos 13.022/2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais) e 13.675/2018 (Lei do Sistema Único de Segurança Pública – SUSP), incorpora avanços históricos decorrentes dos efeitos do Tema 656 de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal no SUSP.
Cabe aos municípios investir na criação, na qualificação e no aparelhamento das suas Guardas Municipais no patrulhamento municipal ostensivo, comunitário e preventivo. Esta também é uma das contribuições da “PEC da Segurança Pública”, corrigindo omissão original da Constituição Federal de 1988 que ainda enseja disputas políticas e corporativas indevidas e contraproducentes pela falta de segurança jurídica constitucional – não mais alegável, diga-se de passagem, após o advento do Tema 656/STF, cujo texto é reproduzido pela PEC.
A PEC pode proporcionar melhores condições para que os municípios possam, de fato e de direito, cumprir os ditames da “Lei do SUSP”, entre eles que cada município (e ente federado) elabore, implemente, monitore e avalia seus respectivos Planos Municipais de Segurança e fortaleça, com o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, suas Guardas Municipais, com vistas a atender sua necessidade local, racionalizando e otimizando o emprego das forças estaduais e federais de segurança pública no enfrentamento dos crimes de maior potencial ofensivo, do crime organizado, reforçando o policiamento nas rodovias (e demais modais) e uma abordagem mais inteligente e articulada contra o tráfico de drogas e demais mercados ilegais.
A sociedade brasileira espera por uma segurança pública de qualidade, que garanta todos os seus direitos fundamentais. Isso começa por uma base normativa sólida, uniforme e justa. A PEC da Segurança Pública, nesse contexto, pode (e deve) ser um reforço normativo e institucional para a construção e consolidação do SUSP em prol de cidades mais seguras, humanas, inteligentes e sustentáveis.