Múltiplas Vozes 09/07/2025

PEC da Segurança Pública: conflitos e desafios

Embora a proposta eleve o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) ao patamar constitucional e modifique a disciplina sobre recursos, suscita dúvidas quanto à sua eficácia prática e aos impactos federativos

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André Santos Pereira

Delegado da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Especialista em Inteligência Policial e Segurança Pública (ESDP/FCA). Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP). Diretor de Estudos e Propostas Legislativas da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL-BR)

A Proposta de Emenda à Constituição nº18/2025, denominada PEC da Segurança Pública, tem potencial para agravar um problema histórico: os conflitos de competência e a crise de identidades dos órgãos de segurança pública. Elaborada pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, e apresentada ao Congresso pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em abril de 2025, a proposta procura reorganizar as competências federativas e dos órgãos na área, além de constitucionalizar fundos e garantir a autonomia das corregedorias.

Entre os desafios está a necessidade de definir, com maior clareza, “quem pode e deve fazer o quê” na segurança pública, seja no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, seja entre a Polícia Federal (PF), a Polícia Viária Federal (PVF), as Polícias Civis (PC’s) e as Guardas Municipais (GCM’s). Embora a proposta eleve o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) ao patamar constitucional e modifique a disciplina sobre recursos, suscita dúvidas quanto à sua eficácia prática e aos impactos federativos.

A PEC reforça o poder normativo da União, conferindo-lhe competência privativa (art.22) para editar normas gerais sobre segurança pública e sistema penitenciário, além de ampliar seu protagonismo ao exercer competência concorrente (art.24), o que pode limitar a atuação suplementar dos Estados e intensificar tensões federativas.

Também constitucionaliza a atuação cooperativa prevista na Lei 13.675/2018 (SUSP), atribuindo competência exclusiva (art.21) à União para coordenar o SUSP e elaborar o Plano Nacional de Segurança Pública. No entanto, a simples inserção do SUSP na Constituição não garante eficácia à integração real das forças policiais.

Além disso, a proposta não resolve os desequilíbrios financeiros: a competência comum (art.23) entre União, estados, DF e municípios para prover segurança pública é prevista de forma genérica pela PEC, podendo sobrecarregar especialmente os municípios.

No âmbito dos órgãos de segurança pública, a PEC reforça a competência da PF para apurar crimes contra o meio ambiente, além daqueles praticados por organizações criminosas e milícias privadas, quando essas condutas tiverem repercussão interestadual ou internacional e exigirem repressão uniforme. Embora já prevista na Lei 10.446/2002, a inclusão expressa dessas infrações penais no art. 144 da Constituição reforça essa atuação.

Contudo, não prevê a transferência da competência da Justiça Estadual para a Federal nos crimes indicados, o que pode gerar insegurança jurídica e conflitos entre órgãos investigativos (PF e PC’s) e tribunais, diante da complexidade e da sobreposição de competências no combate ao crime organizado.

Quanto à PVF, a proposta transforma a atual PRF em polícia ostensiva nacional, ampliando suas atribuições para ferrovias e hidrovias, bem como para atuar, em caráter emergencial e por prazo determinado, quando requisitada por governadores. Essa medida cria interseções com as Polícias Militares no policiamento ostensivo, ainda que preserve a vedação às funções de polícia judiciária, mantidas sob responsabilidade da PF e das Polícias Civis.

As GCMs passam a figurar expressamente como órgãos de segurança pública, com competência para o policiamento comunitário e ostensivo, desde que respeitadas as atribuições constitucionais das PMs e das Polícias Judiciárias. Essa ampliação, já respaldada por decisões do STF (Tema 656 e ADPF 995/2023), pode intensificar conflitos corporativos e operacionais, exigindo regulamentação clara para evitar sobreposições.

A PEC constitucionaliza o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e o Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), com vedação ao seu contingenciamento, atendendo antiga demanda de governadores e gestores. Essa medida reforça a previsibilidade orçamentária, conforme já assinalado pelo STF (ADO 25/2017), e pelo TCU.

Por fim, a autonomia funcional das corregedorias é garantida no texto, conferindo-lhes independência para apurar desvios sem ingerências hierárquicas. Entretanto, não há garantia de sua permanência nas estruturas dos órgãos, risco já observado em experiências anteriores, como em São Paulo (Decreto 54.710/2009), quando a Corregedoria da Polícia Civil ficou subordinada diretamente à Secretaria de Segurança Pública, em descompasso com a Lei 14.735/2023 (Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis).

A PEC nº 18/2025 fomenta um importante debate sobre a integração e a eficiência da segurança pública, mas não resolve desafios operacionais, financeiros e políticos. A ampliação das competências da União e a redefinição das atribuições das forças policiais demandam regulamentação infraconstitucional cautelosa e diálogo federativo permanente. Sem essas salvaguardas, há risco de acirrar tensões entre os entes federativos e prejudicar a efetividade das políticas públicas.

A tramitação da proposta precisa ser alicerçada em diagnósticos técnicos e ampla participação dos servidores da área. Cabe ao Congresso Nacional aprimorar ou rejeitar o texto, prevenindo conflitos e garantindo normas claras para a atuação integrada das forças de segurança.

 

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Lei nº 10.446, de 8 de maio de 2002.
BRASIL. Lei nº 13.022, de 8 de agosto de 2014.
BRASIL. Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018.
BRASIL. Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018.
BRASIL. Lei nº 14.735, de 23 de novembro de 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO 25/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 10 maio 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 995/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 17 maio 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 608.588/DF (Tema 656), Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 06 ago. 2020.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo:
Editora Malheiros, 2017.
SILVA, E. Direito Administrativo Contemporâneo. Porto Alegre: Editora Lumen Juris, 2020.

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