Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 31/08/2022

Paralisia e descontrole da política nacional de armas

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Isabel Figueiredo*

Advogada e mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. É membro do Conselho de Administração e Consultora Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foi Diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública, Secretária Adjunta de Segurança do Distrito Federal e consultora do PNUD e do Banco Mundial

Ivan Marques

Mestre em Relações Internacionais (Unicamp) e Direitos Humanos (London School of Economics), consultor das Nações Unidas para armas e munições e Diretor-executivo da International Action Network on Small Arms (IANSA). Associado Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

David Marques

Coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

A edição do Estatuto do Desarmamento em 2003 foi o marco inicial de uma longa política de controle de armas que o Brasil se dispunha a construir. Em que pesem as medidas fundamentais trazidas pela Lei 10.826/03 e seus decretos regulamentadores, muito havia a ser feito para a implementação de uma política efetiva de controle de armas no país.

Os mais variados estudos e pesquisas produzidos por universidades, sociedade civil e as diversas CPIs sobre o tema apontavam uma série de pendências que deviam ser superadas como, por exemplo, a integração dos sistemas de registro de armas do Exército Brasileiro (EB) (Sigma) e da Polícia Federal (PF) (Sinarm), a otimização do fluxo e do controle de estoques de armas apreendidas, e a garantia da marcação de munições em lotes de acordo com o quantitativo previsto em lei.

Boa parte do pouco que existia foi simplesmente desmantelada por meio de um conjunto de atos normativos de constitucionalidade duvidosa e por um discurso político inicialmente pautado pela falsa noção de que armas geram segurança, ilustrada pela abstração fantasiosa da “legítima defesa”, uma interpretação peculiar do conceito de “liberdade” e, desde a fatídica reunião ministerial de abril de 2020, em uma nova chave de cunho político sintetizada na frase “um povo armado jamais será escravizado”.

O resultado de três anos de incentivo à compra de armas é um país muito mais armado e com grupos de pressão pró-armas organizados e com portas abertas para transitar com absoluta fluidez em altas instâncias do Governo Federal e do Congresso Nacional. A quantidade de armas de fogo nas mãos de civis e CACs (caçadores, atiradores desportivos e colecionadores) ultrapassou, em muito, a quantidade de armas dos órgãos públicos.

Porém, tão importante quanto esses dados é a percepção de que muita coisa não pode ser devidamente mensurada por problemas relacionados à atuação da Polícia Federal (PF) e do Exército Brasileiro (EB) na parte que lhes cabe na implementação da legislação brasileira sobre controle de armas de fogo e munição. Não é de hoje a defasagem de sistemas e a incapacidade de investigar armas desviadas ao crime. Com exceção do heroico trabalho realizado pela Polícia Federal em rastrear munições marcadas e armas de fogo, é raro o trabalho investigativo sobre armas e munições encontradas em cenas de crime por parte das polícias civis estaduais, o que gera impunidade para crimes como tráfico de armas ou desvios do mercado legal para o ilegal.

As ações do governo federal nos últimos anos ampliaram imensamente o interesse público sobre o tema, fazendo com que a mídia e a sociedade civil organizada buscassem ampliar a gama de dados disponíveis para compreensão das novas dinâmicas de acesso às armas, bem como a qualidade das informações produzidas pelos órgãos públicos a respeito. Contudo, esse processo ainda encontra muitos obstáculos. O primeiro e mais importante deles talvez seja a inexistência de um sistema unificado de informações sobre as armas de fogo. O segundo, decorrente deste, é o fato de que Polícia Federal e Exército Brasileiro são responsáveis por segmentos diferentes dos públicos com acesso facilitado ao armamento e ainda fazem uma gestão de seus processos de trabalho de forma cartorária e burocratizada e não com vistas à produção de indicadores que possibilitem o monitoramento e a avaliação da política pública sobre armas do Brasil.

Chama a atenção a dificuldade de fiscalização dos registros inativos de armas de fogo enfrentada pela Polícia Federal. Sem essa fiscalização não é possível conhecer o paradeiro real de mais de um milhão e meio de armas de fogo que se encontram em situação irregular. O mesmo raciocínio aplica-se às fiscalizações realizadas pelo EB.

Em 2003, quando o Estatuto do Desarmamento inaugurou a política nacional de controle de armas, o Brasil estava claramente na vanguarda das políticas públicas de redução da violência. Ainda que uma obra em construção, as medidas tomadas pelo Ministério da Justiça e diversas Secretarias de Segurança Pública nos estados ajudaram a reduzir o número de casos envolvendo armas de fogo. Essa realidade, além de mostrar o desgaste do tempo e sofrer com os duros golpes dos últimos quatro anos também já foi ultrapassada por países que se espelharam no modelo brasileiro, mas hoje desenvolvem políticas mais racionais e efetivas.

Países da região, como Argentina, Peru e Guatemala optaram pelo modelo de uma agência civil para o controle de armas, munições, explosivos e produtos controlados. Sem as amarras trazidas pela relação paralela entre entidades autônomas, como é o caso do Brasil, com a PF e o EB, esses países conseguiram desenvolver políticas centralizadas que facilitam desde o processo de obtenção de licenças de posse e porte, importação, fiscalização fabril e vendas até a otimização de registros e desenvolvimento de sistemas de rastreamento.

A Agência Nacional de Materiales Controlados – ANMaC (Argentina) tem investido em controle de arsenais custodiados, controle de estoques civis de munição e, mais recentemente, na melhoria dos fluxos de destruição de armas e munições apreendidas, evitando o desvio. Outra boa prática vem do Peru. A Superintendência Nacional de Control de Servicios de Seguridad, Armas, Municiones y Explosivos de Uso Civil – SUCAMEC, além de centralizar o registro de novas armas, tem proposta de lei aprovada para somente conceder licenças para novas armas depois que elas deixem suas impressões balísticas documentadas para facilitar eventual identificação futura se essa arma for encontrada em cenas de crime. Ou seja, antes de qualquer arma entrar em circulação, terá sua “impressão digital” registrada para favorecer a investigação criminal.

Enquanto isso, o que vimos no Brasil foi exatamente o contrário. Precarização do trabalho de investigação e rastreamento de armas e munições e voz ativa para não deixar que esse tipo de trabalho, que ajuda a solucionar crimes com armas de fogo, avance. Dessa forma, o modelo de agência reguladora civil independente parece ser um caminho para restaurar a capacidade do governo federal, e do país, em retomar as rédeas do controle de armas.

Soluções mais modernas, como as vistas nos países acima citados, mostram que o Brasil pode avançar rápido se quiser voltar a ter controle sobre a circulação de armas e munições no país.

  • Texto em versão condensada. Para obter a versão originalmente publicada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, acesse: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2022/07/15-anuario-2022-paralisia-e-descontrole-como-a-gestao-da-politica-nacional-de-armas-se-torna-cada-vez-mais-impraticavel.pdf

 

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