Especial 16/11/2023

Para onde nos leva a nova Lei Orgânica das Polícias Militares?

Houve uma grande demanda por parte da sociedade civil organizada para ser ouvida e incluída no debate – algo que, infelizmente, não aconteceu. As demandas vieram de representantes do movimento negro, de instituições que atuam com Justiça Criminal e do próprio Governo Federal (incluindo, por exemplo, o Ministério de Direitos Humanos)

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Carolina Ricardo

Advogada e socióloga. Diretora Executiva do Instituo Sou da Paz e associada sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O projeto de lei que deu origem à Lei Orgânica das Polícias Militares (LOPM), aprovada no último dia 7 de novembro no Senado (PL 3045/22) e pronta para a sanção presidencial, remonta a 2001, numa iniciativa que partiu do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Há mais de 20 anos, portanto, essa agenda circula de lá para cá no Congresso Nacional.

Não há dúvida de que é necessário modernizar o marco legal que rege as polícias no Brasil. As polícias militares, por exemplo, são regidas pelo Decreto-lei 667, de 1969, bastante antiquado e nada adaptado ao perfil e desafios atuais que o policiamento ostensivo enfrenta no país.

Poderíamos ter chegado a 2023 com a aprovação de uma nova legislação capaz de conceber o sistema de segurança pública de forma mais integrada e coordenada, menos militarizado e com uma única lei regendo ao mesmo tempo as polícias civis e militares, no marco do Sistema Único de Segurança Pública. Mas a realidade não permitiu que esse caminho prosperasse e agora resta lidar com o que se tem em mãos.

Desde o final de 2020 a pauta da LOPM entrou com força no debate público. Naquele momento já havia uma grande articulação em torno da sua aprovação. Tratava-se de um projeto de lei que apresentava um forte risco de esvaziamento dos governos estaduais na gestão das PMs: havia, por exemplo, a proposta de lista tríplice e mandato fixo para comandante-geral, a proposta da “porta giratória”, que permitia a policiais da ativa eleitos poder voltar à atividade policial após o mandato, além de algumas regras de promoção e de carreiras que reforçavam disfuncionalidades já presentes em vários estados. Todas eram questões gravíssimas que não poderiam prosperar e acabaram retiradas do texto depois de pressões e diálogos.

A articulação entre as associações policiais em torno da aprovação da lei foi forte e continuou. Especialmente por meio da FENEME (Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais), mas também pelo CNCG (Conselho Nacional de Comandantes-Gerais), pela ANERB (Associação Nacional de Entidades Representativas de Policiais, Bombeiros e Pensionistas Militares) e outras entidades. Numa conciliação de forças inéditas, as polícias civis decidiram apoiar a aprovação da Lei Orgânica das Polícias Militares, assim como as PMs decidiram apoiar a aprovação da Lei Orgânica das Polícias Civis. As bases das PMs, no entanto, não parecem estar muito preocupadas com a nova lei. A articulação é bastante política, fruto da mobilização, sobretudo, das diferentes associações.

No final de 2022, ao apagar das luzes dos trabalhos legislativos, o projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados e remetido ao Senado Federal. Findava a gestão de Jair Bolsonaro, sem a aprovação final do texto. O ano de 2023 chegou com tudo e, com ele, o compromisso do atual Governo Federal com a pauta para, assim, fazer um aceno de aproximação com as polícias militares.

Ocorre que, ao longo do ano, alguns trechos do projeto de lei, que não estavam anteriormente no radar, foram despertando preocupação. Um deles foi o percentual de 20% de vagas em concurso para candidatas do sexo feminino. Na prática, o percentual funciona como um teto para o ingresso de mulheres na corporação, o que vai totalmente na contramão da promoção da diversidade necessária e almejada nas forças de segurança.

Um outro ponto que permanece no projeto é a exigência do bacharelado em direito para ingresso na carreira de oficiais. É consenso que a atividade policial se beneficia com uma formação mais ampla e diversa e que essa exigência reforça uma cultura jurídica na segurança pública que dificulta ao campo policial a atuação de forma autônoma e com suas próprias especificidades.

A questão das Ouvidorias de Polícia subordinadas ao Comandante-Geral também é bastante séria, pois esvazia o caráter de controle externo das polícias, papel essencial das Ouvidorias.

Há ainda a possibilidade de participação das PMs nas atividades que cabem ao Ibama em relação à proteção ambiental, num contexto de forte militarização de algumas áreas do setor público.

Por fim, existe ainda uma grande preocupação com a redação do artigo 29 do projeto de lei, que estabelece uma resposta direta do Comandante-Geral perante o governador do Estado em relação à administração e emprego da PM, o que poderia abrir espaço para a extinção das secretarias de Segurança Pública – uma medida absolutamente contrária ao objetivo de aprimoramento da atuação integrada das polícias.

Além desses aspectos problemáticos que se mantiveram no projeto, houve uma grande demanda por parte da sociedade civil organizada para ser ouvida e incluída no debate – algo que, infelizmente, não aconteceu. As demandas vieram de representantes do movimento negro, de instituições que atuam com Justiça Criminal e do próprio Governo Federal (incluindo, por exemplo, o Ministério de Direitos Humanos).

Temos, portanto, uma lei mais moderna que o Decreto-lei que rege atualmente as PMs, mas com uma série de problemas e sem a participação da sociedade civil. Perdemos, como sociedade, a oportunidade de fazer um debate mais amplo, envolvendo mais atores além dos policiais e de organizações especializadas no tema. Perdemos, também, a chance de termos uma lei mais ampla, capaz de contornar nosso sistema de segurança pública de maneira mais holística e torná-lo menos militarizado. Perdemos, por fim, a oportunidade de termos uma lei que definisse de forma mais precisa uma política de uso da força, tão cara às polícias e, principalmente, à sociedade brasileira.

Nem tudo é perda, contudo. A LOPM aprovada estabelece alguns parâmetros importantes que não estão no horizonte da diversidade de PMs existentes nas 27 unidades da federação. É o caso, por exemplo, da exigência de equipamentos de proteção individual para os policiais e da recomendação de critérios objetivos para a distribuição do efetivo no território. Há também delimitações importantes para a participação política de policiais quando estiverem atuando em nome das corporações – é algo mais do que urgente, com o histórico de excessos da politização das polícias vistas nos últimos anos. Por fim, há também a obrigatoriedade de prestação de contas periódicas por parte das PMs com relatórios contendo, por exemplo, dados de vitimização e letalidade policial.

É o projeto ideal para o Brasil? Não. É apenas o projeto possível. Mas cabe ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetar alguns dos pontos negativos listados acima, para que esta nova Lei Orgânica das Polícias Militares gere mais benefícios do que riscos à segurança pública, à sociedade e, até mesmo, aos próprios policiais.

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