Múltiplas Vozes 30/04/2025

Os obstáculos internos na segurança pública brasileira: como divisões nas polícias e a multiplicação do poder de veto inviabilizam reformas

A fragmentação interna das polícias e sua forte articulação política podem estabelecer um sistema de vetos capaz de impedir transformações institucionais

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Julia Maia Goldani

Doutora em Direito e Desenvolvimento (FGV) e Mestre em Sociologia do Direito (IISL Oñati - UPV/EHU). Consultora de Pesquisa no Instituto Sou da Paz

A recente apresentação da chamada “PEC da Segurança Pública” pelo governo federal reacendeu o debate sobre a necessidade de mudanças no modelo de policiamento brasileiro. Diante desse novo ciclo reformista, torna-se ainda mais relevante a análise das dificuldades sistematicamente enfrentadas em tentativas anteriores de mudança na segurança pública. Compreender por que e como reformas da polícia tendem a fracassar no Brasil é fundamental para avaliar os limites e as possibilidades do processo atual.

A PEC da Segurança Pública foca em adequar as competências das organizações policiais e em aprimorar a coordenação entre os diferentes níveis federativos, com o objetivo de enfrentar a crescente complexidade do crime organizado. Contudo, também traz previsões que tangenciam – embora não abracem de forma central – a ideia de reforma democrática das polícias, como o fortalecimento de ouvidorias e corregedorias. A noção de reforma democrática da polícia refere-se a esforços para alinhar as organizações policiais a princípios de accountability, respeito aos direitos dos cidadãos, subordinação ao controle civil e limitação do uso da força. Reformas dessa natureza visam não apenas a melhorar a eficiência policial, mas também a transformar estruturas organizacionais e práticas cotidianas historicamente marcadas pelo autoritarismo e pela seletividade.

A análise das tentativas de reformas democráticas das polícias brasileiras revela um padrão persistente de fracasso. De um lado, propostas de reforma estrutural, que buscam reconfigurar as bases institucionais das organizações policiais, são abandonadas. De outro, reformas incrementais, voltadas à introdução gradual de novos modelos de policiamento, tendem a ser descontinuadas ou desvirtuadas antes de se consolidarem. A compreensão desses dois fenômenos paralelos requer atenção aos obstáculos internos aos processos de reforma.

Um estudo de caso comparativo entre dois exemplos emblemáticos e contrastantes – a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51/2013, uma tentativa de reforma estrutural de nível federal, e o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), uma experiência incremental de nível estadual – sugere que divisões internas nas polícias levam ao surgimento de grupos com interesses muito diversos nessas corporações. Na medida em que esses grupos detêm controle parcial sobre recursos de coerção estatal, conseguem bloquear, deformar ou inviabilizar reformas que ameacem suas posições dentro da estrutura de segurança pública ou sua autonomia.

A PEC 51/2013, apresentada após as manifestações de junho de 2013, propunha uma reestruturação profunda das instituições policiais brasileiras, com a extinção das polícias militares, a implementação do “policiamento de ciclo completo” e a organização de todas as polícias em carreiras únicas. No Congresso, a proposta enfrentou resistência de diversas associações profissionais de categorias policiais, que se opunham a diferentes pontos, gerando um impasse cuja superação dependeria do envolvimento ativo do governo federal. Contudo, os mesmos grupos de interesse possuíam representação orgânica no Ministério da Justiça e Segurança Pública, replicando o impasse dentro da própria estrutura governamental. Assim, o processo de tramitação da PEC evidenciou como a fragmentação interna das polícias e sua forte articulação política podem estabelecer um sistema de vetos institucionais capaz de impedir transformações mesmo em momentos de alta mobilização social por mudanças.

Já as UPPs, implementadas no estado do Rio de Janeiro a partir de 2008, buscaram introduzir um novo modelo de policiamento comunitário em territórios periféricos, por meio da criação de unidades policiais treinadas para atuar de maneira respeitosa e integrada com a população local. O projeto foi concebido com disposições flexíveis, sem formalização por meio de documentos de política pública e com foco no objetivo amplo de reduzir a violência armada nas comunidades do Rio – estratégias que visavam ampliar sua aceitação tanto dentro quanto fora da polícia. Contudo, essa flexibilidade levou à incorporação de grupos policiais diversos ao projeto, alguns dos quais minaram a reforma “de dentro”, resistindo às diretrizes da liderança reformista ao mesmo tempo em que utilizavam seu controle parcial sobre a coerção estatal para evitar responsabilização. Como resultado, a implementação foi marcada por disfunções e práticas contraditórias, resultando na manutenção de lógicas de controle violento das comunidades. O caso ilustra como reformas incrementais também são vulneráveis à sabotagem interna, ainda que apresentem maior viabilidade inicial de implementação.

Em ambos os casos, a fragmentação das polícias e o poder estrutural autônomo de seus grupos internos criaram condições para o surgimento de um conjunto de vetos armados. Esses vetos não se manifestam apenas por meio da resistência organizada, mas também de práticas políticas que minam intenções reformistas e da distorção na implementação de políticas de segurança pública. Para compreender os obstáculos à democratização das polícias brasileiras, é fundamental considerar essa dinâmica real de poder dentro das organizações policiais.

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