Mais do que uma comemoração da riqueza da cultura negra, o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, destaca a necessidade de reflexão sobre as relações raciais que se estabeleceram no Brasil ao longo dos séculos. A marca nefasta dos quase 400 anos de escravidão pode ser percebida em diversos aspectos da vida social. Sem dúvida, é na área de segurança pública que as desigualdades e discriminações raciais são mais visíveis.
Os estudos mostram que as principais vítimas da violência e criminalidade continuam sendo da população negra, residentes na periferia das grandes cidades brasileiras. Os bairros mais pobres, onde reside a maior parte da população negra, são aqueles que apresentam maior incidência de mortes violentas intencionais.
Embora persistam situações de racismo individual, a maior parte dessas mortes é resultado do que se convencionou chamar de racismo estrutural. Trata-se de uma lógica que está entranhada nas percepções individuais, nas normas que regem o funcionamento das instituições e no padrão das políticas públicas.
Em 2020, cerca de 76,2% das vítimas de mortes violentas eram pessoas negras. De acordo com o Atlas da Violência, a chance de um cidadão negro ser vítima de homicídio é 2,6 maior do que a de um cidadão branco, já descontado o efeito da idade, sexo, escolaridade, estado civil e bairro de residência. As pessoas negras representam 78,9% das vítimas de intervenções policiais. Cerca de 62% dos policiais assassinados em 2020 eram negros.
A violência não afeta apenas os homens negros. Em 2020, 61,8% das vítimas de feminicídios eram negras. Nesse ano, 52,9% das mulheres negras relataram ter sido vítima de algum tipo de violência. As crianças e adolescentes negras também são as mais atingidas pela violência. Entre as crianças de 0 a 9 anos que foram assassinadas em 2020, 63% eram negras. Na faixa de 15 a 19 anos, 83% dos adolescentes mortos violentamente eram negros.
Embora os números revelem uma enorme disparidade na vitimização da população negra, ainda há grande relutância em percebê-los como resultado das históricas desigualdades raciais que marcam a vida social brasileira. Alguns sugerem que a explicação para a concentração de violências nesse grupo demográfico é de natureza econômica. Seria a a pobreza e não a raça que explicaria a vitimização desse grupo.
Sem dúvida que a pobreza é um fator importante para entender a violência. Mas ela sozinha não é capaz de explicar as diferenças nas mortes de negros e brancos. Afinal de contas, mesmo entre os pobres, as pessoas negras são mais afetadas pela violência.
Talvez a melhor forma de entender a desigualdade racial não seja através de quadros estáticos. O filme das desigualdades raciais é muito mais revelador do que as fotografias estatísticas. Se as fotografias mostram um quadro de super-representação das mortes de negros, o filme revela que a desigualdade é duradoura e estável. Entre 2009 e 2019 verificou-se queda de 33% das mortes de pessoas brancas, ao passo que se registrou aumento de 1,6% das mortes de negros. O mesmo pode ser observado entre as mulheres. No mesmo período houve redução de 26,9% no número de mulheres brancas assassinadas ao passo que se verificou aumento de 2% no número de mulheres negras mortas.
O mesmo padrão pode ser verificado em relação aos bairros mais afetados pela violência. Na maior parte das grandes cidades brasileiras, as mortes violentas se concentram em poucos bairros com população predominantemente negra. Se analisarmos esta concentração ao longo do tempo, poderemos verificar que os bairros mais violentos são os mesmos de 20 ou 30 anos atrás. Ou seja, o quadro se repete sem que nada seja feito para efetivamente mudar a situação. Nesse caso, o racismo estrutural se revela na forma de omissão de políticas públicas voltadas para a juventude negra dessas áreas.
As pesquisas mostram que as operações policiais que resultam em mortes ocorrem fundamentalmente nesses bairros pobres. Os estudos também mostram que este padrão se repete há décadas. Frequentemente essas operações resultam em mortes de moradores sem qualquer relação com atividades criminosas. É nessas áreas que crianças são vítimas de balas perdidas. Nesse caso, o racismo estrutural se revela nas percepções das autoridades a respeito dos bairros nos quais as mortes de civis são toleradas.
Conhecemos as fotografias e o filme da desigualdade racial. Sabemos que a desigualdade racial não é fruto do destino nem do acaso. Ela é resultado de escolhas políticas. O filme pode mudar, ele precisa mudar.