Múltiplas Vozes

Obviedades de uma decisão judicial para os parâmetros da segurança pública

A decisão do STF que limitou as operações policiais em favelas do Rio deveria abrir caminho para a elaboração de uma política de segurança pública mais eficiente e sustentável, que não se limitasse somente ao período de pandemia

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Robson Rodrigues da Silva

Antropólogo, membro do Laboratório de Análise da Violência da UERJ

A decisão do Supremo Tribunal Federal que limitou as operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, produzindo efeitos positivos na segurança pública fluminense, é redundante quanto à observância de critérios e condicionantes legais já estabelecidos no ordenamento pátrio para o exercício do poder de polícia do Estado. A decisão deveria, portanto, abrir o caminho para a elaboração de uma política de segurança pública mais eficiente e sustentável, que não se limitasse somente ao período de pandemia, já que os critérios ali lembrados têm sido pouco exigidos pelas instituições estaduais de controle da atividade policial.

Em junho de 2020, o ministro Edson Fachin, do STF, concedeu liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, restringindo as operações policiais em favelas do Rio de Janeiro a casos absolutamente excepcionais, enquanto durar a epidemia de Covid-19. Essa decisão histórica, confirmada em agosto pelo plenário daquela corte, obriga que, mesmo nesses casos excepcionais, as operações devem ser “devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – responsável pelo controle externo da atividade policial”[1]; e que “sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior a população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária”[2]. Há quem classifique essa decisão como uma interferência indevida do Judiciário no Executivo, mas o fato é que, depois que ela foi proferida, houve uma melhoria nos números da segurança pública no estado. Talvez, diante da falta de uma política pública mais adequada, sensata e razoavelmente comprometida com a defesa da vida, essa tenha sido a ação mais eficaz no campo da segurança pública do estado nos últimos tempos, como assegura o Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades, da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF)[3]. 

A divisão do trabalho policial

Em linhas gerais, o trabalho da polícia nas democracias desenvolvidas está relacionado à manutenção da ordem pública e ao controle do crime, tanto na sua prevenção, quanto na sua repressão, identificando criminosos e colhendo evidências da materialidade criminal com vistas a subsidiar a justiça penal.  No entanto, no Brasil, onde os estados são responsáveis pela maior parcela da segurança pública, o trabalho policial é dividido entre duas instituições policiais: a polícia militar, a quem cabe o policiamento ostensivo e a vigilância de caráter preventivo, e a polícia civil, que, como polícia judicial[4], é responsável pela investigação dos crimes comuns. Esse modelo bipartido, criado em 1967, para atender os interesses de controle político da ditadura militar, até hoje não foi reformulado em termos de uma polícia verdadeiramente cidadã, isto é, com vistas a assegurar direitos e liberdades estabelecidos em um contexto democrático pela chamada “Constituição Cidadã” de 1988. Ao contrário, permaneceu praticamente o mesmo, salvo pouquíssimas modificações pontuais que não alteraram sua estrutura remanescente. Ou seja, passamos da segurança nacional para a segurança cidadã com o mesmo modelo de polícia, praticamente. Apesar de alguns de seus defensores alegarem que essa divisão seja um efeito do processo de especialização da instituição policial, na prática, ela traz mais tropeços que eficiência para um já combalido sistema policial brasileiro, haja vista as taxas da criminalidade violenta em geral, notadamente as da letalidade policial, bastante elevadas para os padrões mundiais, além das baixas taxas de elucidação criminal.

A noção de “operação policial” segundo as diferentes perspectivas do trabalho policial

Devido a tal divisão, faz-se necessária a compreensão da noção de “operação policial” sob essas distintas perspectivas institucionais. De uma maneira geral, seu significado implica planejamento prévio e não rotineiro; no caso da Polícia Militar, refere-se a atividades eminentemente preventivas e, no da polícia civil, atividades de caráter persecutório na investigação dos crimes comuns. A legislação brasileira permite a qualquer cidadão efetuar a prisão de criminosos em flagrante delito, mas exige de toda e qualquer autoridade policial, nesses casos, a prisão de ofício. Essa possibilidade está incluída nas operações policiais realizadas pela PM e, assim, elas se justificam quando realizadas para a prevenção do delito até o limite da sua “repressão imediata”. Esse parâmetro jurídico de atribuições por si só já diminui bastante a margem de manobra da PM, da qual estariam excluídas, pelo menos em tese, ações do tipo “combater o tráfico de drogas” ou “checar denúncias” sobre crimes ou paradeiros de criminosos que não estiverem em flagrante delito, todas essas estão no escopo persecutório das atribuições de polícia judicial. Por outro lado, são justificáveis para a PM operações de caráter administrativo, tais como as operações de trânsito (OpTran) ou as ações preventivas planejadas para as áreas de alta incidência criminal (APrev), ou, ainda, operações realizadas em apoio a policiais que eventualmente se deparem, em suas rotinas de vigilância ou atendimento de ocorrências, com situações de risco ou emergência que ultrapassem suas capacidades de resposta, quando, inclusive, se fizer necessária a intervenção de unidades especializadas.

No caso da polícia civil, as operações policiais compreenderiam ações de polícia judicial reguladas no Código de Processo Penal, sob a forma de investigações que instruem o Inquérito Policial, procedimento de natureza administrativa e sigilosa, cujo escopo é apurar a autoria e a materialidade dos crimes comuns. Dentre tais ações estão, por exemplo, a inquirição do acusado e testemunhas, a realização de exames periciais, além das medidas solicitadas junto ao Judiciário, através do Ministério Público, tais como o cumprimento de mandados de prisão, de busca pessoal e/ou domiciliar, de quebra de sigilos bancário e/ou telemático, etc. Nesses casos, são realizadas operações no sentido de garantir tanto o êxito da investigação, quanto a integridade física das pessoas e das provas. Diferentemente da repressão imediata, mais provável pelos contatos ocasionais com as ocorrências de flagrante delito, as operações policiais de caráter persecutório têm a chance de serem mais qualificadas com dados e informações levantados no tempo da investigação criminal, o que, em tese, implica a possibilidade de uma melhor avaliação dos riscos por parte da autoridade policial para suas tomadas de decisão. Portanto, a PM trabalha originariamente na prevenção, mas deve atuar na repressão imediata dos delitos, nos casos de flagrantes. A partir daí, inicia-se o trabalho da polícia civil.

 Um hiato legal-regulamentar

Apesar dessa normatização que parametriza o poder de polícia exercido pela polícia judicial, há um hiato na legislação brasileira quanto ao exercício do poder de polícia do Estado pela polícia militar. A única baliza nesse sentido encontra-se inscrita no arcabouço constitucional, precisamente no artigo 144 da constituição da República, e se refere de forma genérica às atividades de policiamento ostensivo e preservação da ordem pública. Aliás, a noção de ordem pública, bastante lacunosa por sinal, encontra-se definida em termos de trabalho policial apenas no Decreto 88.777, de 30 de setembro de 1983 (R-200), o qual regula o Decreto-Lei 667, de julho de 1969, que desde então trata da organização e da mobilização das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares brasileiros.

 Condicionantes do poder de polícia

Apesar dessas diferenças, o poder de polícia não é absoluto em ambos os casos, já que está condicionado a princípios do ordenamento jurídico como os da razoabilidade, proporcionalidade e menor onerosidade para o cidadão. Nesse sentido, a determinação do STF chega a ser redundante, porque obriga a administração pública fluminense ao óbvio, ou seja, a um juízo prévio de oportunidade e conveniência para o exercício desse poder de polícia do Estado. Portanto, a responsabilidade pelo exercício adequado desse poder administrativo a tais condicionantes legais é da autoridade policial competente, tanto a que determinou, quanto a que realizou aquela operação policial naquele momento. Além da devida razoabilidade da ação e proporcionalidade dos meios utilizados, exige-se de tais autoridades o juízo de oportunidade e conveniência, com a avaliação prévia sobre os possíveis resultados de suas ações, bem como dos meios utilizados para obtê-los, diante de eventuais riscos e possíveis prejuízos. Assim, a autoridade é obrigada nesses casos a optar pelo meio menos oneroso para o cidadão.

Decisão judicial com cara de política de segurança

Aliás, se foi necessária uma decisão do STF para que se mudasse um padrão já naturalizado e pouco questionado pelas instituições de controle da atividade policial, é porque esse óbvio não era tão “ululante”, como definia Nelson Rodrigues. De fato, tal padrão foi mudado para melhor, segundo valores civilizatórios. Não só os números da letalidade policial caíram, interrompendo um ciclo de crescimentos recordes no estado, como também as taxas da criminalidade geral continuaram a descer, mostrando que não é a quantidade de “operações”, absurdamente alta e sem critérios, que tem sido determinante para a queda desses indicadores, mas talvez a sua qualidade. Aliás, discursos punitivistas já tentaram estabelecer uma “relação espúria” desse tipo entre a ação belicista das forças de segurança e queda das taxas de criminalidade no estado, no que foram contraditados em pesquisa realizada pelo próprio Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro[5]. Nesse sentido, ao cumprir a decisão do STF, a PM é proibida de se estender em operações que vão além de suas atribuições, não lhe restando outra alternativa senão retornar com mais ênfase sua tarefa originária de prevenção, melhorando assim a prevenção, já que o policiamento ostensivo é um cobertor curto. Enquanto isso, a Polícia Civil, obrigada a justificar e comunicar com mais critério ao MP suas investigações que ensejam uma “operação policial”, se vê forçada a esmerar-se em atividades de inteligência, o que qualifica suas operações e possibilita melhor avaliação dos riscos e ameaças, deixando-lhe mais capaz de proteger a vida de pessoas envolvidas, seja a de criminosos, de moradores, ou dos próprios policiais.

[1] Disponível em:< https://www.conjur.com.br/dl/adpf-rio-fachin.pdf>

[2] Idem.

[3] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/decisao-stf-restringiu-acoes-policiais.pdf>

[4] A Polícia Militar atua também como polícia judicial nos crimes militares cometidos por seus integrantes, mas essa é uma atribuição apenas residual, pois o grosso de sua atividade rotineira se concentra mesmo nas atividades de policiamento ostensivo com caráter preventivo.

[5] Disponível em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/540394/letalidade_policial_no_rio_de_janeiro_em_10_pontos_1.pdf

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