Múltiplas Vozes 22/11/2023

O que sabemos e o que não sabemos sobre o impacto das câmeras corporais na segurança pública

Em vez de incentivar mais avaliações de impacto e a ampliação da agenda de pesquisa, o governo do estado de São Paulo parece caminhar para uma apressada desconstrução do projeto de câmeras corporais, negligenciando as múltiplas evidências que indicam importante queda na letalidade e na vitimização policial

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Maria Gorete Marques de Jesus

Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP)

Daniel Edler Duarte

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP)

Diante da escalada da letalidade policial, em 2021, a PMESP lançou o projeto “Olho Vivo”, um sistema de câmeras operacionais portáteis (COPs) que gravam a rotina de trabalho dos profissionais de segurança. Desde então, diversas pesquisas buscaram entender o impacto das COPs na violência policial. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública observou que, entre 2019 e 2022, houve uma queda de 76% nos casos de mortes decorrentes da intervenção policial nas unidades que fizeram uso das câmeras. Análise do Instituto Sou da Paz encontrou efeito semelhante sobre a letalidade contra jovens de 15 a 19 anos (queda de 58%), e também destacou uma redução de 44% nos casos de vitimização policial. Pesquisa realizada pelo CCAS/FGV indicou que a ferramenta foi responsável ainda por uma queda de 63% nos casos de lesões corporais causadas por policiais em serviço. As evidências corroboram, portanto, os efeitos positivos da política de controle do uso da força.

No entanto, há ainda algumas dimensões pouco exploradas sobre o impacto das câmeras. Pesquisa realizada junto à Polícia Militar de Santa Catarina indica que o equipamento tem um efeito de apaziguamento. Ou seja, ocorrências que antes escalavam para agressões e demandavam o uso da força letal passaram a ser resolvidas de forma menos violenta. Contudo, sem análises qualitativas, não temos clareza sobre como as COPs interferem nas abordagens e condicionam a interação entre policiais e cidadãos, sejam vítimas ou suspeitos.

O uso das imagens no sistema de justiça criminal também é um tema pouco explorado. Pesquisadores do NEV-USP começam a cobrir essa lacuna ao analisar como procuradores, defensores e juízes mobilizam as imagens, investigando em quais casos há solicitação de acesso, quem faz o pedido e em que etapa do processo isso ocorre. Estudo preliminar com os autos de processos na cidade de São Paulo revela, por exemplo, que as imagens raramente são utilizadas em audiências de custódia. A pesquisa indica que defensores não solicitam registros de possíveis abusos de policiais por receio de que esses impliquem os custodiados.

Assim, as COPs parecem ter mais impacto nas audiências de instrução e julgamento, sendo empregadas enquanto elementos probatórios. Contudo, mesmo nesses casos, não são raros os processos em que juízes dão mais crédito ao testemunho dos profissionais de segurança do que às evidências em vídeo. Ademais, há indícios de que a PMESP emprega uma série de subterfúgios para dificultar o acesso a imagens que comprometam seus agentes. Juízes e defensores relatam atrasos recorrentes, casos em que as imagens são editadas e envios parciais (i.e., disponibilização da câmera de apenas um dos policiais envolvidos na ocorrência). O que se observa, portanto, é que dependendo do uso feito pelos operadores do direito, as COPs podem servir mais como uma ferramenta punitiva do que como instrumento de garantia de direitos.

Faltam pesquisas também sobre como as COPs interferem nas relações de trabalho dentro dos batalhões de polícia. São comuns os relatos de policiais sobre práticas abusivas dos supervisores, que usam as imagens não para averiguar condutas violentas, mas para punir subalternos por pequenos desvios de conduta. Ou seja, ao invés de auxiliar no controle da letalidade ou fornecer subsídios para casos de corrupção, as câmeras estariam sendo usadas para questões menores, como o uso de bonés ou a limpeza de coturnos. Mulheres que integram as forças de segurança também relatam o receio de que seus comandantes possam acessar imagens em espaços íntimos, como vestiários e banheiros.

Por fim, restam dúvidas sobre o efeito das câmeras em outras áreas da ação policial, como prisões em flagrante, atendimentos para chamadas de perturbação do sossego, casos de desobediência ou no controle de manifestações populares. Dados da SSP/SP apontam queda relevante nas apreensões por tráfico de entorpecentes, mas com menor efeito nas unidades que fazem uso das COPs. Estudo do CCAS/FGV indica ainda que os registros de violência doméstica cresceram 102%, efeito semelhante ao observado em casos de furtos, discussões e brigas. Entretanto, a crônica falta de transparência das instituições de segurança pública dificulta a realização de pesquisas mais robustas sobre o tema.

Infelizmente, ao invés de incentivar mais avaliações de impacto e a ampliação da agenda de pesquisa, o governo do estado de São Paulo parece caminhar para uma apressada desconstrução do projeto de câmeras corporais, negligenciando as múltiplas evidências que indicam importante queda na letalidade e na vitimização policial. As COPs não são uma panaceia, mas o monitoramento constante de seus efeitos por pesquisadores independentes poderia ajudar a identificar os gargalos e contribuir para o aperfeiçoamento da política.

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