O papel dos Planos Nacionais de Segurança Pública na indução de políticas públicas municipais de segurança*
É necessário repensar a forma com que o governo federal se compromete (ou melhor, não se compromete) com o financiamento das políticas municipais de segurança pública
Letícia Fonseca Paiva Delgado
Secretária de Segurança Urbana e Cidadania de Juiz de Fora/MG. Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF). Mestra em Ciências Sociais (UFJF). Graduada em Direito. Pesquisadora do INEAC. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Violência e Direitos Humanos da UFJF (NEVIDH/UFJF). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Sociologia do Direito (NSD/UFF)
A Constituição Federal de 1988 marca o início de um processo de expansão da participação dos munícipios na segurança pública. Percebe-se que, gradativamente, as prefeituras municipais passaram a criar órgãos gestores próprios e instrumentos para o planejamento da política municipal de segurança, tais como: secretaria, conselho, fundo e plano, além, é claro, da guarda municipal.
Recorrentes são as leituras que relacionam o maior envolvimento do município na área aos pilares de uma concepção cidadã de segurança ou às tentativas dos gestores locais de manterem as condições de governabilidade. No entanto, a capacidade de o governo federal induzir políticas públicas municipais de segurança também deve ser considerada.
Entre os anos 2000 e 2018, o Brasil conheceu diferentes tentativas de estruturação de uma política nacional de segurança pública. Mesmo que marcados por intermitências, descontinuidades e ausência programática, a análise desses planos nacionais evidencia como o município gradativamente deixou o papel de ator periférico para assumir centralidade na política nacional. A título de exemplo, enquanto a Constituição Federal de 1988 limitava a participação dos municípios na segurança pública à criação das guardas municipais, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, instituído em 2007, valorizou o papel desses entes na estruturação das políticas de prevenção e induziu a criação dos GGIM – Gabinete de Gestão Integrada Municipal. Além disso, em 2018, a lei nº 13.675, ao instituir o Sistema Único de Segurança Pública, reconheceu os municípios como integrantes estratégicos do SUSP, ao lado dos demais entes federativos.
Desse processo resultou um aumento significativo das estruturas e políticas na área. A guarda municipal, por exemplo, já estava presente em 21,3% dos municípios brasileiros no ano de 2019, segundo pesquisa realizada pelo IBGE (2020). Outro dado significativo é aquele divulgado em pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no ano de 2019: entre os anos de 2002 e 2017, os municípios tiveram um aumento de 258% nos gastos com a segurança pública, percentual que superou significamente aqueles indicados para a União e os estados-membros. No entanto, os municípios ainda encontram diversos obstáculos à obtenção de recursos federais para auxiliar no financiamento dessas políticas.
Em 2001, o Fundo Nacional de Segurança Pública – FNSP – limitou o acesso aos recursos federais aos municípios que tivessem guarda municipal. Essa estratégia de indução tornou-se estratégia recorrente na política nacional. Um exemplo recente é a previsão expressa no artigo 22, §5º da lei do SUSP de que os municípios devam criar seus planos municipais para terem acesso a recursos da União para a execução de programas ou ações de segurança pública e defesa social. No entanto, a elaboração de um plano, por si só, depende de outras iniciativas a serem gestadas e custeadas pelo próprio município, como a criação de conselho municipal de segurança, bem como uma secretaria com essa competência específica.
Apesar do esforço dos municípios para se adequarem às diretrizes da política nacional, as despesas empenhadas pelo governo federal para repasse via convênio para os municípios não seguem nenhum padrão. Ademais, a ausência de previsão de transferências obrigatórias fundo a fundo para os municípios impede que esses entes possam fazer qualquer previsão para a implementação de suas políticas municipais que, por vezes, é requisito para obtenção das verbas federais.
É importante ressaltar que os municípios se mostram extremamente dependentes das transferências estadual e federal, posto que as receitas tributárias destes entes representam apenas 20% do total das receitas correntes. Conforme afirmam os pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a capacidade dos municípios de se financiarem é muito menor, fazendo com que as transferências correntes, e principalmente as governamentais, sejam vitais para sua manutenção.
Não há dúvidas sobre a importância de uma maior participação do município na segurança pública. No entanto, é necessário repensar a forma com que o governo federal se compromete (ou melhor, não se compromete) com o financiamento das políticas municipais de segurança pública. A ausência de previsão legal acerca da transferência para os municípios dos recursos do FNSP alimenta uma lógica contraditória e perversa: os municípios, tradicionalmente dependentes das transferências dos demais entes federados, aumentam seus gastos na área da segurança pública com a expectativa de receberem repasses do governo federal. No entanto, a história demonstra que a expectativa dificilmente se concretiza.
* Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de Segurança Pública