Bruno Paes Manso*
Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2012), com mestrado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2003).Graduado em economia pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (1993) e em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (1996). Pós-doutor pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, onde atua atualmente como pesquisador.
Era o ano de 1974. Vindo da Irlanda, Padre Jaime Crowe tinha chegado ao Brasil em 1969. Estava no Embu havia quatro anos. A população da cidade, que era de 5 mil habitantes em 1960, vinha recebendo um grande fluxo de migrantes pobres das zonas rurais brasileiras. Chegava aos anos 70 cheia de problemas, com habitações irregulares, sem serviço de água, luz, esgoto, escola, saúde e com mais de 20 mil habitantes. Naquele dia, padre Jaime estava na casa do operário João Cabral para rezar no enterro de sua esposa, dona Benedita, que havia morrido no parto de seu décimo primeiro filho. Nas prateleiras, não havia nenhum grão de feijão. Sem ter o que comer, dona Benedita não tinha resistido porque passava fome.
A realidade das periferias nascentes era dura e cruel. O salário de João Cabral, na empresa Fibra Caixa, estava atrasado havia dois meses. O proprietário da firma, ligado a movimentos católicos tradicionais, tentava convencer o padre a promover encontro de casais com Cristo na igreja do Embu. A intenção era boa, mas o padre não conseguia fechar os olhos para os valores distorcidos que testemunhava em seu cotidiano. O mesmo empresário católico que atrasava salários tinha dado de presente ao seu filho, que acabara de completar 18 anos, um carro Mustang.
Era apenas mais uma evidência, ele acreditava, da necessidade de levar a fé e os valores do cristianismo para a política. Assim como outros religiosos católicos desse período em São Paulo, padre Jaime era influenciado pela Teologia da Libertação. Os pobres, ele defendia, deviam se organizar para tornarem-se agentes transformadores de seu próprio destino. Na Bíblia, Cristo dizia: “Viva a partilha”. Eram palavras de ação concreta, em defesa da luta contra as injustiças. Cristo não pedia às pessoas que se conformassem e apenas rezassem.
Nascido e criado na roça, em uma família de dez irmãos, padre Jaime tinha se mudado para o Brasil aos 24 anos, depois que sua congregação, a Sociedade Missionária São Patrício, atendeu aos apelos do Papa João XXIII para enviar sacerdotes aos bairros pobres da América Latina. O objetivo da Igreja era ajudar na reforma do sistema capitalista, como solução para frear o avanço do comunismo no continente, ainda abalado pelo impacto da Revolução Cubana. A reforma do sistema e a ampliação dos direitos, contudo, conforme os teólogos libertadores, deviam ser lideradas pela luta e conscientização dos excluídos.
Era um momento de efervescência nas cidades, que cresciam de forma caótica. A Ditadura Militar completava dez anos no poder, com denúncias silenciadas de mortos, desaparecidos e de torturas em seus porões, incluindo de religiosos, como os frades dominicanos. Um deles, Frei Tito de Alencar Lima, havia se matado em agosto daquele ano, por não resistir às sequelas das torturas.
Padre Jaime se formou nesse ambiente de resistência, dividindo as tarefas com o conterrâneo padre Eduardo José McGettrick, que chegou ao Embu em 1974. Ambos andavam a pé pelo bairro, tomavam café na casa dos moradores, se inteiravam de seus problemas, conversavam com seus filhos. Torcer para o Corinthians e jogar futebol ajudou o padre a se aproximar dos jovens. A Igreja Católica, em São Paulo, naquela época, era liderada por Dom Paulo Evaristo Arns, que tinha assumido a Arquidiocese em novembro de 1970.
A luta por direitos sociais era organizada nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), espalhadas pelas periferias da metrópole. Nelas, os fiéis se reuniam para debater seus problemas e dificuldades a partir da Bíblia. A população se juntava nas CEBs para organizar mutirões de autoconstrução e cobrar direitos. As igrejas, com auxílio de voluntários, podiam fazer o papel de creches para cuidar dos filhos das mães que trabalhavam. Na Pastoral Operária, nasciam os movimentos de oposição sindical que formariam lideranças das greves nascentes, como Santo Dias – morto pela polícia em outubro de 1979, durante um piquete – e Luiz Inácio Lula da Silva, que se tornaria presidente do Brasil por três mandatos.
Em 1987, padre Jaime e padre Eduardo se mudaram para o Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, onde iniciaram os trabalhos na Paróquia Santos Mártires. Permaneceriam lá pelos 32 anos seguintes. Santo Dias era um dos mártires que padre Jaime sempre lembrava em sua igreja. Eram tempos de redemocratização, crise econômica, desemprego e medo. Os homicídios não paravam de crescer, assim como a violência policial. No dia 10 de dezembro daquele ano – Dia Internacional dos Direitos Humanos – padre Jaime recebeu uma visita inusitada. Um homem que não conhecia pediu para dormir em sua igreja. Padre Jaime suspeitou de sua postura e não autorizou.
No dia seguinte, soube que o visitante misterioso era o justiceiro Florisvaldo de Oliveira, conhecido como Cabo Bruno, um dos principais assassinos da polícia paulista. Cabo Bruno estava no bairro para tentar matar Pirulito, filho de uma liderança do bairro, que havia testemunhado, três anos antes, uma chacina praticada por policiais. Pirulito iria prestar depoimento na Justiça, quando foi atacado pelo justiceiro. Quinze dias depois, na noite de Natal, padre Jaime viu nos jornais a notícia de que Cabo Bruno havia fugido do Presídio Romão Gomes. Como pode, se ele estava solto? A conivência das autoridades com a violência policial se revelava ali, explícita, bem diante de seus olhos.
O resultado desse conluio velado entre autoridades e a violência ia produzir mais desordem e homicídios nos bairros pobres de São Paulo. O Jardim Ângela estava no epicentro desse drama, com tiroteios e mortes à luz do dia. Em 1995, a taxa de homicídios no bairro alcançou 120 casos por 100 mil habitantes, acima da cidade de Cali, na Colômbia, que ocupava o primeiro lugar do ranking da violência. O bairro ganhou destaque como o lugar mais violento do mundo.
Era preciso organizar, resistir e tomar as rédeas do destino. No ano seguinte, em 1996, a comunidade da Igreja Santos Mártires passou a organizar a Caminhada pela Vida e pela Paz, que passou a ocorrer todo dia 2 de novembro, em Finados. No cortejo, familiares homenageiam quem eles perderam para a violência, junto com moradores do bairro. O destino final é o Cemitério São Luís, que nos anos 1980 e 1990 ficou conhecido pela elevada proporção de jovens enterrados, vítimas de homicídios. A cerimônia sempre se encerra com um ato ecumênico, em que padres, pastores evangélicos e lideranças de religiões de matriz africana participam do culto.
A mobilização em torno das caminhadas produziu bons resultados. O secretário de segurança da época, José Afonso da Silva, instalou duas bases comunitárias na região, para tentar aproximar a polícia da vizinhança. Serviços sociais, voltados ao atendimento psicológico e de assistência social, passaram a crescer. São Paulo, com o passar do tempo, parecia aprender que a solução para a cidade era aproximar as diferenças. Lição ensinada pela própria população das periferias que, cada vez mais, assumia as rédeas de seu próprio destino.
Movimentos culturais explodiram, como o hip-hop, que ajudou a criar uma identidade masculina periférica, com talento, olhar crítico e afiado. A própria religiosidade foi reinventada por meio dos movimentos pentecostais, cujas igrejinhas assumiram o lugar dos bares como imóvel obrigatório na paisagem das quebradas. Houve ainda importantes avanços de políticas públicas, como a Lei de Cotas, que ampliou as oportunidades para o ingresso de jovens negros, vindos de escolas públicas, nas universidades. Até o crime conseguiu se organizar e interromper os conflitos autodestrutivos que exterminavam a geração de jovens desses lugares. Não é o ideal, mas houve redução de danos. No ano de 2022, apesar de todos os seus problemas, São Paulo era a capital com menos homicídios no Brasil. O estado seguiu tendência semelhante e também tem menos assassinatos que as demais unidades da federação.
Em 2019, estive com padre Jaime pessoalmente pela última vez. Junto com a Comissão Arns e o Fórum em Defesa da Vida, tentamos organizar, no dia 2 de novembro, uma ação nacional de resistência pela redução dos homicídios. Oito estados aderiram. Veio a Covid, mas o esforço continua. Depois de completar 52 anos no Brasil, padre Jaime decidiu voltar para a Irlanda, onde faleceu de infarte, no dia 20 de fevereiro. Dois terços de seus 77 anos de vida foram nas periferias de São Paulo. Permanece seu legado em defesa da vida, da paz, do diálogo interreligioso e da resistência contra qualquer tipo de opressão.
*O texto foi escrito com bases em conversas que tive com padre Jaime Crowe e no depoimento que ele deu ao livro Fé e Política – As lutas das Comunidades Eclesiais de Base, organizado por Dalila Maria Pedrini, Mari Isabel Lopes Correa e Wagner Silva Correa