Multiplas Vozes 10/08/2022

O fetiche da legislação

Em ano eleitoral, principalmente nas épocas em que determinado crime ganha manchetes, é comum aparecer um legislador que apresenta um projeto punindo mais aquele crime que é a bola da vez. Agora é a hora do 'novo cangaço'

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Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A Câmara dos Deputados aprovou há poucos dias proposta que cria uma lei específica para punir os que praticam o chamado “novo cangaço”. Nessa modalidade criminal, grupos de criminosos fortemente armados tomam conta de uma cidade, muitas vezes atacando a polícia local, enquanto roubam bancos ou transportadoras de valores. O projeto seguiu para o Senado se posicionar, e só depois disso e da sanção presidencial poderá virar lei.

Existem vários problemas com esse projeto, e o principal deles é que segue a tendência de sempre – alterar a legislação cada vez que surge um novo tipo de crime. Normalmente a mudança tem a ver, de alguma forma, com o aumento das penas. O que, pelo menos até agora, nunca foi eficaz para combater a criminalidade profissional. E, como a história demonstrou ao longo das últimas décadas, qualquer tipo de crime aumenta ou diminui devido a vários fatores, não exatamente o tamanho da pena.  Um exemplo claro é a transformação, há cerca de duas décadas, do homicídio e do tráfico de drogas em crime hediondo, aumentando a pena dos condenados por esses delitos. Depois dessa medida legislativa o homicídio cresceu no país durante quase vinte anos, só vindo a cair em 2018, por uma conjunção de fatores que ainda não estão totalmente explicados. Quanto ao tráfico de drogas, é bom nem falar. Morando no centro da cidade de São Paulo há mais de dez anos, vi o aumento gradual da presença dos pequenos e médios traficantes nas ruas. Ou seja, a mudança legislativa, feita na época para diminuir esses crimes, teve zero efeito em sua propagação.

Em ano eleitoral, principalmente nas épocas em que determinado crime ganha manchetes, é comum aparecer um legislador que apresenta um projeto punindo mais aquele crime que é a bola da vez. Seus colegas votam favoravelmente e, depois dos festejos iniciais, a vida segue, e ninguém analisa se tal lei teve ou não algum resultado prático.

O que a análise fria e objetiva dos fatos demonstra é que o velho iluminista Cesare Beccaria, que morreu em 1794, estava certo. Segundo ele, “a certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade”.

Para não ficarmos apenas na teoria, estudemos alguns casos concretos. O primeiro deles é o da onda de sequestros que o país viveu no fim do século passado e início deste. O crime específico é de extorsão mediante sequestro, e seu apogeu ocorreu primeiro no Rio de Janeiro e depois em São Paulo.

Em ambos os estados os criminosos agiram quase que impunemente durante um tempo. Como em toda onda criminal, no início eles tinham a iniciativa. Aprendiam o know how com seus colegas e pareciam invencíveis. O motivo disso é que os órgãos repressivos do estado normalmente são reativos. Quem tem a iniciativa são os criminosos profissionais, que sempre inventam novas maneiras de agir, muitas vezes apenas inovando na forma de cometer velhos crimes. As polícias vêm atrás: nos primeiros casos, batendo cabeça, mas aos poucos vão se adaptando e começam a apresentar bons resultados. No caso em tela, prendendo alguns sequestradores, através deles identificando quadrilhas, áreas e formas de atuação e, gradualmente, conseguiram tornar o sequestro pouco convidativo. Ai o número de casos foi caindo, com os criminosos passando para outras atividades menos arriscadas.

Esse foi o mesmo processo que ocorreu nos roubos a banco comuns, que se tornaram mais arriscados a partir do momento em que as polícias civis passaram a identificar as quadrilhas e os bancos tomaram medidas concretas para sua proteção. Câmeras, porta giratória, sistemas de alarme, pouco dinheiro nos caixas. O custo-benefício mudou e o número de roubos a banco tradicional diminuiu, pelo menos por um tempo. Então os criminosos se adaptaram. Passaram à explosão de caixinhas eletrônicos, por exemplo. Então o ciclo recomeçou, com as polícias identificando as quadrilhas e prendendo os explosivistas.

Qualquer polícia, no mundo inteiro, é parte da burocracia do executivo, e, como toda burocracia, é lenta. Demora para mudar seus métodos, enquanto que o crime muda de forma mais ágil, apenas pelo exemplo e a aprendizagem. Para evitar a elaboração de leis cada vez mais específicas, aumentando nossa confusão jurídica, os legisladores deveriam pensar em como reforçar a investigação e a inteligência policial que são, na realidade, a única forma comprovada de, no curto prazo, enfrentar o crime profissional.

Isso, porém, não traz votos. Prova disso é o descaso para com as Polícias Civis na maioria dos estados brasileiros. Muitas chegaram a um ponto em que, na prática, não mais investigam crimes comuns devido à burocratização e à falta de efetivo. Basta ir a qualquer delegacia de polícia nas periferias das grandes cidades e ver a quantidade de inquéritos sem solução. Isso quando são instaurados, já que na maioria das vezes o queixoso pode apenas contar com a elaboração de um Boletim de Ocorrência.

Em vez de apostar em mudança legislativa a cada novidade vinda do mundo do crime, nossos legisladores deveriam trabalhar, junto com o Executivo, para repor os quadros faltantes nas polícias, diminuir a burocracia das instituições, bem como resolver algumas distorções salariais. Depois disso, cobrar resultados. Mas como é melhor jogar para a plateia…

 

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