Múltiplas Vozes 10/04/2024

O dito e o feito e as imunidades institucionais na Segurança Pública

Desde a tipificação das condutas criminosas, da construção dos ritos processuais, da instrumentalização dos protocolos, o fio condutor é a desigualdade

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Gilvan Gomes da Silva

Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Algumas notícias sobre ações e operações policiais recebem atenção pela gravidade das violências envolvidas, mas com o foco limitado, pois fazem parecer que a ação individual ou até das instituições é inédita, ou um vínculo histórico com o passado que perdura anacronicamente com as relações sociais do presente.

Um dos fatos é relativo a uma filmagem que começa com o registro de uma abordagem policial em São Paulo em que um homem negro sentado com outras pessoas na frente de casa recebe a ordem de colocar a mão na cabeça e ao se levantar recebe um golpe de cassetete do policial; em sequência o homem entra em casa seguido pelos policiais, que continuam ordenando que coloque as mãos na cabeça. Dentro de casa, várias pessoas tentam intervir, inclusive o pai do homem, que é cadeirante e algumas mulheres, e são afastados com ações ríspidas, ameaças de prisão, chutes, entre outras ações.

A abordagem contrasta com algumas outras, principalmente a realizada em Alphaville. Solicitados pela vítima de violência doméstica, policiais militares foram xingados, sentindo-se humilhados. E, mesmo com a notícia de violência, conseguiram manter a calma e seguir os protocolos operacionais. Durante a ocorrência policial, o acusado de agressão xingou e ameaçou os policiais, comparou a própria remuneração com a dos policiais e telefonou para diversas autoridades estaduais.

As discrepâncias das ações podem parecer fatos inéditos ou pontuais. Contudo, com uma simples pesquisa pode-se perceber que há outros, às vezes com as mesmas ações, e em outras com formas diferentes, mas com conteúdo semelhante. A atuação do Estado no caso do incidente envolvendo o empresário que matou o motorista de aplicativo em São Paulo é um exemplo da continuidade de seleção de tipos de obediência aos protocolos operacionais por parte dos agentes do sistema de controle do Estado. Mesmo com indícios de alta velocidade como causa do acidente, os policiais permitiram que o empresário e condutor do veículo avaliado em mais de um milhão de reais saísse do local sem realizar todos os procedimentos legais e, por consequência, não fosse apresentado à autoridade policial competente de imediato. A apresentação do acusado foi realizada posteriormente, sem que houvesse a possibilidade da realização de testes eficazes de embriaguez ou outros ritos processuais. A prisão preventiva foi solicitada pela autoridade policial, diante das ações de dificultar a investigação do caso, mas foi negada pela autoridade judicial.

Algumas análises rápidas destes fatos e outras ações seguiriam a linha que são resquícios de outros momentos históricos (Brasil Império ou ditadura) que perduram. Todavia, essas diferenças de interpretação dos códigos e protocolos pelos agentes do Estado (policiais militares e civis, promotores e juízes) seguem a mesma lógica, o mesmo conteúdo, mesmo em situações que aparentemente sejam formas diferentes: como diria o professor Edmundo Campos Coelho, são orientadas pelas imunidades institucionais (mesmo que não legais). Assim, a relação do dito e do feito fica nítida quando perguntado para quem e sobre quem, dependendo da categorização positiva ou negativa construída.

O dito está na legislação vigente, nos protocolos profissionais, nas ementas dos cursos de formação e de atualização profissionais. É resultante das correlações de força, dos conflitos pelos poderes e representa, de certa forma, o ideal em um determinado contexto de concentração do poder social, econômico, político e jurídico. O feito está nas interações sociais, individuais ou em operações conjuntas; está na fundamentação das políticas ou na legitimidade dos grupos que a constroem. Neste sentido, as imunidades institucionais são um dos instrumentos de manutenção da ordem social quando os que têm os direitos (dito e feito) correm o risco de estar sujeitos a punição ou perda de determinado poder em alguma parte do processo, então a imunidade institucional restabelece a ordem social, de forma que haja a menor perda possível.

Portanto, as multas processuais, as indenizações ou até as sentenças restritivas de liberdade, por exemplo, não têm o mesmo impacto na vida no grupo de pessoas que têm as imunidades institucionalizadas. Desta forma, a consolidação dos códigos de processos e ritos apelativos, a interpretação subjetiva dos códigos e protocolos de ação e a adoção de ações ou omissões são orientadas pela objetividade desta lógica. A ação policial não está “descolada” da interpretação judicial, mesmo que em última instância. A intensidade do uso da força do Estado está inversamente relacionada com o grau de concentração de um poder e com a imunidade institucional. Não é um resquício do Brasil Império ou da ditadura, é um construto destes momentos históricos, assim como outras relações sociais, mas que também são reflexos de uma sociedade contemporânea com concentração de poderes.

Por ser parte constituinte e constitutivo da estrutura da sociedade brasileira, é uma das expressões resultantes das disputas e da concentração dos poderes que são basilares e simbólicos do nível de democracia contemporânea. A gradação na interpretação orienta a gradação da força do sistema de controle social e está diretamente relacionada com a interseccionalidade entre raça/etinia com classe social e a posse dos poderes sociais, econômicos, políticos e jurídicos. Por isso, está presente nas ações institucionalizadas. Consequentemente os roteiros típicos da vida cotidiana seguem. Não é uma ação, uma decisão ou uma operação que falhou; é sistêmico e próprio da desigualdade.

Logo, as abordagens, as operações e as políticas de segurança pública se interligam por mais um fio condutor. As manchetes jornalísticas repetem o enredo. Assim como no caso semelhante envolvendo o empresário Thor Batista, ou no outro acidente similar ocorrido em 22 março de 2022, ou abordagem a jovem no metrô,  ou em ações criminais. Desde a tipificação das condutas criminosas, da construção dos ritos processuais, da instrumentalização dos protocolos, o fio condutor é a desigualdade. Onde não está positiva, onde não está dito, a subjetividade é orientada pelo que é feito costumeiramente.

Portanto, a curto e médio prazo, é importante a construção de dispositivos de controle institucional. Os Protocolos Operacionais Padrões, a gravação da ação do agente do Estado, entre outras medidas, são importantes. Mas tão importante quanto é o controle sistêmico, com participação da sociedade civil organizada, inclusive na análise dos desvios de conduta institucionalizada, com objetivo de medidas de correção individual, tanto para os agentes “de rua” quanto para os agentes “de última decisão”, mas também com mudança institucional.

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