O direito fundamental à leitura no sistema prisional brasileiro: espaços de resistência à lógica punitivista
A efetiva universalização e democratização do direito à leitura exige intervenções concretas, planejadas e permanentes, assim como ações de sensibilização que envolvam gestores e servidores prisionais, representantes do Sistema de Justiça Criminal, pessoas privadas de liberdade e seus familiares e, ainda, investimentos em estrutura e recursos humanos
Christiane Russomano Freire
Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas. Integrante do Laboratório de Gestão de Políticas Penais - LabGEPEN/UnB/Brasília
A questão penitenciária, indiscutivelmente, consiste num dos fenômenos sociais mais graves e complexos dentre a multiplicidade dos fenômenos que marcam e desafiam a realidade contemporânea brasileira. O Brasil, há algumas décadas, figura como um dos países que mais encarceram no mundo. Conforme dados do SISDEPEN referentes ao segundo semestre de 2024, a população prisional totalizava 909.067 pessoas, sendo que 674.016 cumpriam pena em celas físicas e 235.051 em prisão domiciliar, com ou sem monitoração eletrônica (SENAPPEN, 2024)[1].
As altas taxas de aprisionamento no país produziram um mosaico de violações aos direitos fundamentais que, para além dos efeitos sistêmicos da superlotação carcerária, acabaram por generalizar as práticas de torturas e maus-tratos, a degradação física e psicológica, a restrição de direitos básicos como saúde, educação, trabalho, acesso à justiça, dentre outros.
Esse cenário de violações sistemáticas e estruturais no sistema prisional brasileiro motivou que, no ano de 2015, o STF acolhesse a Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 347, reconhecendo cautelarmente o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema prisional brasileiro. Em 2023, no julgamento de mérito, a Corte considerou que a responsabilidade pelo Estado de Coisas Inconstitucional deveria ser atribuída às três esferas do poder alcançando a União, os Estados e o Distrito Federal, e determinou a elaboração de um Plano Nacional (Pena Justa) e de Planos Estaduais e Distrital com vistas à superação dessa realidade.
O Plano Pena Justa apresenta um conjunto de ações que visam a modificar positivamente a vida das pessoas assujeitadas pelo sistema penal, cujos impactos esperados podem ser sistematizados no fortalecimento das alternativas penais e nos novos paradigmas de responsabilização em liberdade; na reversão do processo de hiperencarceramento e na diminuição da superlotação no sistema prisional; na modificação positiva das estratégias de gestão e da vida das pessoas no sistema prisional; na construção das políticas públicas sustentáveis; e na repercussão positiva para a vida em sociedade (BRASIL, 2023)[2].
Dentre a multiplicidade e a transversalidade das ações mitigadoras previstas no Plano Pena Justa, chamamos a atenção para a importância da garantia do direito à leitura no cenário prisional, tendo em vista não apenas os seus impactos na redução do tempo de pena e, portanto, da superlotação carcerária, mas, sobretudo, a sua capacidade de criar espaços críticos e criativos nas rotinas prisionais fortemente marcadas pelos rituais de violência, castigo e desumanização.
No contexto brasileiro, a política de universalização e democratização do direito à leitura vem sendo institucionalizada e efetivada por meio de produções normativas e iniciativas penais. Dentre o conjunto de ações essenciais, ressalta-se a importância da publicação da Resolução 391 do CNJ, em 2021, que regulamentou a remição da pena pela leitura, prevendo a possibilidade da redução de quatro dias de pena por livro lido, observado o prazo de 12 meses e o limite de 12 obras lidas e avaliadas durante o período, podendo totalizar 48 dias de remição da pena. Além disso, foi adotado o critério da adesão voluntária, prevendo que o acesso às bibliotecas e ao acervo literário seja garantido a presos provisórios e condenados, assim como a toda e qualquer pessoa que cumpra medida de segurança ou pena nos diferentes regimes.
Na sequência da Resolução 391/CNJ, o Departamento Penitenciário Nacional e o Conselho Nacional de Justiça publicaram a Nota Técnica Nº 72/2021/COECE/CGCAP/DIRPP/DEPEN/MJS[3], com a finalidade de sistematizar orientações e procedimentos acerca das ações de fomento à leitura, à cultura e aos esportes em ambientes de cárcere, integrando a política de educação para o sistema prisional.
Concomitante às ações mencionadas, durante o ano de 2022 e 2023, foi realizado o Censo Nacional de Leitura nos Sistema Prisionais e Socioeducativo, diagnóstico inédito que buscou mapear práticas e projetos de leitura em todas as unidades prisionais e socioeducativas do país, com objetivo de captar avanços, obstáculos e lacunas existentes. No tocante ao Sistema Penitenciário, o Censo Nacional de Leitura foi desdobrado em cinco dimensões: a) Eixo – Identificação das Unidades Prisionais; b) Eixo – Educação Formal; c) Eixo – Bibliotecas/Espaços de Leitura; d) Eixo – Práticas e Projeto de Leitura; e) Eixo – Remição da pena pela leitura.
O diagnóstico nacional trouxe algumas informações importantes para a construção de uma política nacional capaz de garantir o acesso ao livro e à leitura nos ambientes prisionais. Das 1.347 unidades prisionais que responderam o survey, o que corresponde a 99,63% de todo o universo prisional brasileiro, 61,2% afirmaram contar com bibliotecas, enquanto 38,8% disseram não contar. Sendo que 737 (54,7%) disseram possuir práticas e projetos de leitura em andamento, e 610 (45,3%) disseram não possuir nenhum tipo de atividade dessa natureza. E, destas 737 unidades, 586 (79,5%) declararam que as práticas e projetos de leitura garantiam o direito à remição da pena pela leitura, e 151 (20,5%), disseram não garantir.
A pequena parcela de indicadores acima mencionados evidencia, por um lado, que, embora a política voltada a garantir o direito à leitura e à remição da pena ainda não estivesse plenamente institucionalizada no cenário prisional nacional, já existiam importantes iniciativas em andamento, na sua ampla maioria resultantes de ações voluntárias e pontuais levadas a cabo por parte dos servidores penitenciários e de outros atores que a trabalham no campo penitenciário. E, por outro, que, a efetiva universalização e democratização do direito à leitura exige intervenções concretas, planejadas e permanentes, assim como ações de sensibilização que envolvam gestores e servidores prisionais, representantes do Sistema de Justiça Criminal, pessoas privadas de liberdade e seus familiares, e, ainda, investimentos em estrutura e recursos humanos.
É nesse contexto que se inscreve o Plano Nacional de Fomento à Leitura em Ambientes Prisionais[4], lançado em outubro de 2023, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Secretaria Nacional de Política Penais (SENAPPEN). O Plano tem como finalidade principal
(…) estabelecer os diálogos estruturantes entre os Poderes Judiciário e Executivo para fazer avançar, no sistema prisional brasileiro, o direito ao livro e à leitura previsto na Lei 13.696/2018, que criou a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE). Trata-se de estratégia permanente de promoção do livro, da leitura, da escrita, da literatura e das bibliotecas de acesso público no Brasil e que prevê, em seu art. 2°, inciso I, a diretriz de universalização do direito ao acesso ao livro, à leitura, à escrita, à literatura e às bibliotecas (BRASIL, 2023).
A garantia do direito fundamental ao livro e à leitura nos ambientes prisionais, como toda e qualquer política penal comprometida com os direitos humanos e que negam o paradigma punitivo, apostando em práticas de restauração, reparação e emancipação, é um processo descontínuo, marcado por avanços, retrocessos e, permeado por obstáculos, que exige esforços conjuntos de vários atores, intervenções permanentes e disputas no sentido do resgate da dignidade humana das pessoas privadas de liberdade e na redução das violências institucionais.