Múltiplas Vozes 15/01/2025

O decreto sobre o uso da força e a linha divisória entre a segurança pública em democracia e o populismo penal

A resistência de alguns governadores às medidas se insere numa narrativa política que visa atender a uma opinião pública amedrontada e insegura, oferecendo soluções simplistas, como a aplicação de métodos violentos e ilegais no enfrentamento da criminalidade

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS e membro do INCT-InEAC

Arthur Trindade M. Costa

Professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O Decreto Federal de 23 de dezembro de 2024, que regulamenta o uso da força pelas polícias no Brasil, surge em um contexto de crescente debate sobre a atuação das forças de segurança e a necessidade de garantir que sua ação seja proporcional, adequada e em conformidade com os direitos e garantias fundamentais. Este decreto não apenas reforça e detalha normas já previstas na Constituição Federal, em tratados internacionais e nos Códigos Penal e de Processo Penal, mas também traz inovações importantes para garantir controle mais eficaz da atividade policial e uso mais responsável da força.

O principal objetivo do decreto é regulamentar a atuação das polícias no uso da força, estabelecendo diretrizes que buscam equilibrar a segurança pública com o respeito aos direitos humanos. O uso de força letal, por exemplo, deve ser considerado apenas como último recurso, sendo utilizado apenas quando outros meios não forem suficientes para conter uma ameaça, o que significa que a aplicação de cada nível de força deve ser cuidadosamente ajustada à situação. A ideia central é que a força seja empregada de maneira proporcional à situação enfrentada e, sempre que possível, não letal. Esse princípio se alinha a tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e as Diretrizes da ONU sobre o Uso da Força, que já determinam que o uso da força deve ser restrito a situações de necessidade e proporcionalidade. Além disso, o decreto reforça a Constituição Federal, que garante os direitos fundamentais dos cidadãos, e segue os princípios do Código Penal e do Código de Processo Penal, que já preveem normas sobre a atuação policial.

Garantir que esse tema seja abordado nas formações periódicas dos policiais é fundamental, pois capacitar os profissionais de segurança para que ajam de maneira adequada pode prevenir abusos e proteger tanto os cidadãos quanto os próprios agentes. Mais ainda, o decreto estabelece que o repasse de verbas do Fundo Nacional de Segurança Pública esteja condicionado à adoção, pelos governos estaduais, das medidas constantes no decreto, assegurando que as políticas de segurança sigam padrões nacionais.

Além disso, é fundamental destacar que, caso o policial utilize a força de forma abusiva, fora dos padrões de legalidade e do uso progressivo, ele deverá ser responsabilizado criminalmente pelas consequências dessa ação, sempre que a situação não se enquadre nas excludentes de ilicitude da legítima defesa e exercício regular de direito. Para tanto, a estruturação de ouvidorias, o bom funcionamento das corregedorias e o estabelecimento de protocolos no âmbito do sistema de justiça criminal para lidar com esses casos também são fundamentais, assim como a garantia aos policiais do exercício do contraditório por meio de defesa técnica qualificada.

O decreto é, sem dúvida, bem-vindo e foi resultado de um amplo processo de discussão, envolvendo diversas esferas do governo e da sociedade civil. Essa fase de debate permitiu um aprofundamento dos temas relacionados ao uso da força e à segurança pública, contribuindo para a elaboração de normas mais alinhadas aos direitos humanos e às necessidades da população. No entanto, apesar de sua importância, a reação contrária de alguns governadores era, de certa forma, esperada. Muitos desses governadores têm se posicionado contra medidas que, ao buscarem uma abordagem mais equilibrada e responsável, podem ser interpretadas como uma limitação das prerrogativas estaduais. Essa resistência, muitas vezes, segue uma narrativa política que visa atender a uma opinião pública amedrontada e insegura, oferecendo soluções simplistas, como a aplicação de métodos violentos e ilegais no enfrentamento da criminalidade. Essa postura não é apenas contraditória em relação às melhores práticas de segurança pública, mas também ignora as causas estruturais da violência e o risco de abusos e corrupção no sistema policial. É o que em outro momento chamamos de legitimação da violência policial como estratégia de governo.

A nota publicada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública veio em tempo oportuno, destacando a importância de se buscar um equilíbrio entre as medidas de segurança pública e a preservação dos direitos fundamentais. A nota cumpriu o papel de esclarecer, no debate público, as intenções do decreto, e reafirmar a necessidade de sua implementação com transparência, reforçando a vigilância da sociedade civil. Contudo, fica clara mais uma vez uma grave deficiência do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP): é papel do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) elaborar normas consultando segmentos da sociedade, mas essas normas precisam ser aprovadas em um conselho deliberativo que permita uma discussão mais aprofundada e representativa de todos os setores envolvidos.

No caso do decreto, o CONASP (Conselho Nacional de Segurança Pública), por mais que tenha um papel importante, não tem a estrutura necessária para tratar de questões tão específicas e técnicas. O conselho é muito amplo, e a natureza das normas a serem debatidas exige um espaço mais especializado. O único conselho “setorial” existente é o ConSINESP (Conselho Nacional de Secretários de Estado de Segurança Pública), que seria o órgão mais adequado para discutir a regulamentação e assegurar a inclusão de representantes dos estados nesse processo. Seria interessante que o decreto tivesse sido referendado por um Conselho Setorial composto por representantes dos Estados, com o objetivo de evitar as críticas de quebra das prerrogativas estaduais e garantir um maior alinhamento das políticas públicas de segurança com as realidades locais. Esse tipo de consulta e aprovação ajudaria a afastar resistências políticas e a promover uma maior colaboração entre os diferentes níveis de governo.

A questão, no entanto, provavelmente vai parar no Supremo Tribunal Federal (STF), seja por recurso de governadores ou por uma possível contestação da bancada da bala, que, por motivação ideológica, costuma se opor a regulamentações que possam reduzir a intensidade do uso da força e impor controles sobre a ação policial. Nos dois casos, o STF terá a oportunidade de reafirmar o papel do MJSP e do Poder Executivo para editar normas no âmbito do SUSP e para regulamentar tratados internacionais relacionados à segurança pública. O STF poderá, assim, consolidar a competência do Ministério da Justiça para formular diretrizes e normas gerais, resguardando os direitos humanos e respeitando as prerrogativas estaduais, mas dentro de um contexto que favoreça a justiça e a eficácia das políticas de segurança.

É importante reconhecer que, ao elaborar e apresentar ao presidente Lula o decreto sobre o uso da força, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob a direção do Ministro Ricardo Lewandowski, conseguiu estabelecer uma linha divisória clara entre os que defendem caminhos de segurança pública dentro de uma perspectiva democrática e cidadã, focada na redução da violência e do crime dentro dos marcos do Estado Democrático de Direito, e aqueles que, movidos pelo oportunismo, sucumbem ao populismo penal. Esses últimos preferem acenar para a opinião pública com propostas que, ao negligenciar o necessário controle da atividade policial, optam pela barbárie, cujos efeitos já são visíveis em estados onde a violência policial se agrava, produzindo novas vítimas e não contribuindo em nada para a diminuição da violência. Essa linha demarcadora mostra que, embora o Brasil enfrente desafios no combate à criminalidade, a mentalidade autoritária ainda persiste. A busca por políticas de segurança eficazes e que possam controlar a criminalidade em todos os níveis não pode, de maneira alguma, significar a renúncia a princípios fundamentais que sustentam uma sociedade verdadeiramente democrática, e que se pretenda menos violenta.

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