Múltiplas Vozes 28/05/2025

Novas evidências sobre vitimização de mulheres presas

Pesquisa de vitimização em penitenciária do RS mostra que violências relatadas tiveram como autores, em sua maioria, outras presas, além da importante participação de agentes da segurança pública. Os dados revelam uma realidade pouco conhecida sobre o sofrimento para além da privação de liberdade

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Marcos Rolim

Professor do PPG de Memória Social e Bens Culturais da Unilasalle e do curso de Direito da UniRitter (RS); membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Em novembro de 2022, desenvolvemos em Porto Alegre, no Presídio Feminino Madre Pelletier, pesquisa de vitimização com amostra aleatória e representativa de mulheres encarceradas[i]. Um questionário adaptado de instrumentos internacionais, com 100 perguntas, foi respondido por 41 internas (mais de 30% das reclusas no dia). Outros dois conjuntos com seis presas cada, que não haviam respondido ao questionário, participaram de grupos focais em que foi possível conhecer de forma mais aprofundada os sentidos que elas atribuem a sua experiência de privação de liberdade. A forma como percebem o cotidiano a que estão submetidas também foi objeto de questões. Os dados, tristes e muito expressivos, revelam uma realidade ainda hoje pouco conhecida a respeito do sofrimento para além da privação de liberdade.

O estudo agrega dados surpreendentes sobre vitimização nas prisões e muitas informações sobre a realidade das internas e suas rotinas, tendo constatado, em síntese, que a) 24,4% das presas da amostra relataram terem sido vítimas de furto na Instituição; b) 14,6% foram vítimas de roubo; c) 39% sofreram agressões físicas; d) 9,8% das presas tiveram bens seus destruídos propositalmente; e) 65% foram ofendidas verbalmente; f) 34,1% foram ameaçadas; g) 36,6% sentiram-se discriminadas por diferentes motivos; h) 9,8% foram violadas sexualmente e i) 80,5% não recebem visitas íntimas. As violências relatadas tiveram como autores, em sua maioria, outras presas, mas há, também, importante participação de agentes da segurança pública entre os autores (policiais penais, civis e militares), segundo os relatos.

Para melhor situar esses resultados, entretanto, é preciso considerar que o Madre Pelletier é, atualmente, instituição de passagem onde a maioria das detentas aguarda a decisão de encaminhamento para outra instituição. Assim, quando da coleta dos dados, nenhuma das respondentes da amostra estava ali por um período maior do que cinco meses. Os relatos de vitimização dizem respeito, assim, a um período muito pequeno. A instituição, importa assinalar, não se situa entre as piores do estado, o que sugere que outras pesquisas de vitimização em presídios masculinos e femininos do Rio Grande do Sul deverão encontrar dados ainda mais graves.

Em “Manicômios, Prisões e Conventos”, Erving Goffman nos fala sobre o processo de “mortificação do eu” observado em suas pesquisas nos espaços que ele chamou de “Instituições totais”. A mortificação demanda rituais de não reconhecimento em que se propõe uma forma de degradação legitimada socialmente que envolve procedimentos como a retirada dos pertences pessoais dos internos, a imposição de uniformes e/ou de posturas corporais padronizadas; a submissão das pessoas a horários e rotinas muitas vezes arbitrárias e que nada têm a ver com os propalados objetivos da instituição, além da negação da privacidade, com inspeções corporais frequentes e abusivas, vigilância constante, violação do sigilo de correspondência etc.

Essas características, presentes no tradicional sistema penitenciário brasileiro, não dizem respeito à legislação e, muito menos, aos princípios constitucionais. Elas são o resultado de uma tradição secular de negligência e abandono da execução penal pelo Poder Público no Brasil. Nada nesse processo de mortificação corresponde a uma necessidade pública, tampouco a uma pretensa “ontologia das prisões”.

Um estudo abrangente a respeito da vitimização nas prisões deverá considerar esse processo de mortificação, o que envolve medir aspectos da violência que se introduzem sorrateiramente como norma e que são, por isso mesmo, depositados mais facilmente nos amplos salões da irreflexão política contemporânea construídos pelo descaso com as pessoas marginalizadas. Nosso trabalho não avançou para essas dimensões, nem poderia aprofundar temas como o sofrimento mental que atinge as mulheres presas de forma ainda mais ampla e radical do que os homens, mas, em novos estudos, esperamos agregar essas dimensões para a análise.

Como se sabe, vários países já contam com serviços nacionais de pesquisas de vitimização que realizam sistematicamente levantamentos sobre a realidade da vitimização produzida pelas práticas criminais. Tais estudos são essenciais para que o Poder Público possa construir diagnósticos reais das tendências criminais, o que é impossível de produzir se a base de dados for aquela das ocorrências registradas pelas polícias por conta do conhecido fenômeno da subnotificação ou “cifra obscura” (dark rate). Já há também, no plano internacional, uma importante tradição de estudos de vitimização nos presídios, incluindo levantamentos sistemáticos realizados por órgãos do Estado. Experiências como essas deveriam chamar a atenção dos gestores e agentes políticos brasileiros, mas, quando o tema é segurança pública, a impressão que se tem é que evidências científicas e políticas públicas criteriosas não possuem qualquer espaço real nos ambientes de Poder.

REFERÊNCIAS
[i] Artigo em coautoria com Daiana Hermann, com os resultados da pesquisa foi publicado pela Revista Direito & Práxis e pode ser acessado em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/81057

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