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Nos bancos dos réus: o impacto dos dados criminais nas garantias penais

Erros nos softwares de reconhecimento facial têm gerado prisões de inocentes, documentadas pelo menos no Distrito Federal, na Bahia e no Rio de Janeiro. Em outros países, o reconhecimento por imagem chega a uma margem de erro de 81%

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Rafael Barreto Souza

Advogado, mestre em Direito (UFC) e em Estudos do Desenvolvimento (IHEID, Suíça). Pesquisador do LabGEPEN/UnB

Quem passa pela justiça criminal associa o sentimento a sentar-se no banco dos réus, a sentir-se acuado, intimidado, mas também impelido a se defender e esperançoso de um processo justo. Quem é réu já passou pela investigação policial, foi acusado pelo Ministério Público e está diante de um juiz imparcial que examinará seu caso. Hoje há outros bancos que preocupam. Não aqueles de madeira nos fóruns. Nesses outros não se presume a inocência, não se condena nem se absolve, mas se permanece. Muitas vezes para sempre. São os bancos de dados criminais digitais.

Esses bancos cresceram vertiginosamente nas últimas décadas no Brasil. No governo federal, o SINESP centraliza os dados criminais. Iniciado em 2001, o sistema ganhou status de lei em 2012 e, em 2018, tornou-se central com a instituição do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Dele derivam vários outros bancos de dados estaduais das polícias civis. Em todos, são coletados primordialmente dados pessoais de identificação, que incluem diversos dados biométricos. Com uma tecnologia que avança a passos largos e uma regulamentação esparsa e pouco detalhada, esse procedimento atrita com a legalidade.

Identificação criminal

A Constituição, que odeia o policiamento autoritário dos tempos militares, determina que “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei” (art. 5º, LVIII). Segundo a lei de 2009 que rege o assunto, a identificação criminal se caracteriza por um “processo datiloscópico e o fotográfico, que serão juntados aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de investigação”. Diferencia-se da identificação civil, que se dá pela simples apresentação de um documento de identidade válido, como RG, carteira de trabalho etc. Ou seja, se a pessoa suspeita ou presa apresenta um documento pessoal, a identificação criminal não deve ser feita.

A legislação foi alterada em 2019 pelo Pacote Anticrime e inclui biometria de digitais, íris, face e voz. Não existe, entretanto, regulamentação federal sobre o método de registro, tampouco sobre o compartilhamento desses dados. A alteração acresceu ainda a coleta biométrica de dados de “presos provisórios ou definitivos” sempre “quando não tiverem sido extraídos por ocasião da identificação criminal”, o que esvazia a excepcionalidade da identificação criminal anunciada na Constituição.

Neste cenário legal e de penúria regulamentar prosperam os abusos. O uso de reconhecimento facial a partir de fotografias em bancos se dados já é adotado em 20 estados. Erros nos softwares têm gerado prisões de inocentes, documentadas pelo menos no Distrito Federal, na Bahia e no Rio de Janeiro. Em outros países, o reconhecimento por imagem chega a uma margem de erro de 81%.

No Ceará, os dados biométricos são usados em ações ostensivas de abordagem coletiva sem qualquer fundada suspeita, como exige a legislação. A Polícia Militar também desenvolve bancos de identificação criminal próprios. Em São Paulo, policiais têm fotografado todos os suspeitos e alimentado um banco fora das bases oficiais da polícia investigativa, que, em 2009, tinha mais de 320 mil cadastrados. Nem a Polícia Federal está isenta. Em 2021, anunciou um novo sistema, o ABIS (Automatic Biometric Identification Solution), projetado para armazenar dados de mais 50 milhões de pessoas somente nos dois primeiros anos de implantação. Organizações de proteção de dados consideram ser ilegal a proposta federal.

Dados penais

Nos casos citados, os dados do sistema prisional também são compartilhados com as polícias. Os órgãos de administração penitenciária coletam uma miríade de dados que se sobrepõem às informações policiais. Os bancos carcerários formam uma sopa de letras: E-Gepen em São Paulo, SIPEN no Rio de Janeiro, SIISP no Maranhão, SIAPEN no Mato Grosso do Sul, e assim por diante. Todos permitem o cadastramento de presos condenados ou não, com diversos dados biométricos, em que pesem algumas variações nas funcionalidades.

Manter registros detalhados é um imperativo de boa gestão penitenciária. Os problemas surgem com o compartilhamento de dados com outros órgãos. Em particular, propicia a detenção de pessoas que sequer são suspeitas de cometer um crime. É o caso em que se prende alguém por considerar que descumpriu uma condição estabelecida pela justiça para estar em liberdade. Estão sujeitas a isso as pessoas em prisão domiciliar e aquelas no regime semiaberto, sobretudo quando vigiadas por uma tornozeleira eletrônica. Como esses equipamentos funcionam por sinal de celular, pequenos incidentes como falhas de conexão ou afastamento de poucos metros de casa são entendidos como violações e ensejam a prisão. Muitos estados adotam operações policiais de larga escala para prender pessoas que geralmente estão em casa e sem ter cometido um novo crime. São exemplos numerosos no país, como no Paraná, Alagoas, Bahia e Pará. Movimenta-se a porta giratória do sistema carcerário, entrando indivíduos que muitas vezes acabaram de sair dos presídios, em função de incidentes sanáveis.

Normas

A principal referência internacional sobre registros carcerários são os parâmetros instituídos pelas Regras de Nelson Mandela da ONU. Uma de suas diretrizes mais relevantes é em relação ao compartilhamento desses dados, indicando que todos os registros “serão mantidos confidenciais e acessíveis somente àquelas pessoas cujas responsabilidades profissionais requeiram o acesso”.

O sigilo também é a tônica do mais recente marco legal no tema: a Lei Geral de Proteção de Dados ou LGPD. Com vigência iniciada em 2021, a lei estipula que o acesso a dados pessoais deve seguir, entre outros, os princípios da finalidade, adequação, necessidade e da não discriminação. Assim, exige uma motivação específica de acordo com essas finalidades para o que denomina de tratamento de dados pessoais. A LGPD resguardou a regulamentação dos dados tratados para fins de “segurança pública” e “atividades de investigação e repressão de infrações penais” a uma lei específica, que ainda não existe. Porém, ressalvou que a nova legislação siga os princípios gerais de proteção e os direitos do titular” previstos na lei. Dito de outro modo, o compartilhamento de dados pessoais no sistema punitivo deve guiar-se por finalidades específicas, pela individualização e por um juízo de necessidade e proporcionalidade. Não é um campo aberto de acesso generalizado por órgãos de segurança pública.

Controle judicial

O Judiciário tem o papel de assegurar a reserva de jurisdição no acesso a dados pessoais na justiça criminal. Em outras palavras, o acesso a esses dados dependerá de uma decisão judicial. Na esquecida disposição incluída na lei de identificação criminal pelo Pacote Anticrime em 2019 consta: “A autoridade policial e o Ministério Público poderão requerer ao juiz competente, no caso de inquérito ou ação penal instaurados, o acesso ao Banco […].” Outra norma esquecida é aquela que sustenta ser “inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial […]”. Está na Constituição.

Apesar do recente enfoque na expansão dos bancos criminais, a lei ainda preserva meios para eliminar esses dados, especialmente no caso de prisões ilegais, de arquivamento, de absolvição, de trânsito em julgado da condenação, conforme aponta a Lei nº 12.037 de 2009. Na mesma toada, o Código de Processo Penal, desde 1949, considera parte da reabilitação do preso que as “condenações anteriores não serão mencionadas na folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal”.

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