Roberto Wagner de Azevedo Sant'Ana
Perito Criminal da Polícia Federal (PF)
O tráfico de drogas ilícitas no Brasil representa um desafio de primeira grandeza para policy makers e estudiosos. Apenas as perdas econômicas associadas às mortes violentas atribuídas ao proibicionismo de drogas no país respondem por cerca de R$ 51 bilhões anuais (CERQUEIRA, 2024). Somente no ano de 2021, de acordo com informações da Polícia Federal (PF), quase 1.500 indivíduos foram presos por transportarem drogas ilícitas, sendo apreendidas mais de 615 toneladas de entorpecentes, com predominância para maconha (83%), seguida de cocaína (16%). Não são consideradas, para cálculo desse volume, as prisões e apreensões realizadas pelas Polícias Civis estaduais, o que torna as dimensões ainda maiores.
Não obstante a relevância do tema, uma questão pouco estudada diz respeito às pessoas que transportam essas substâncias ilícitas, tanto para os principais mercados varejistas nacionais como internacionais, também chamadas de “mulas do tráfico” (WOLA, 2018). Em geral são indivíduos em situação de dificuldade financeira (vulnerabilidade social), que são cooptados pelas facções, com o objetivo de obter recompensa financeira.
Os dados extraídos dos documentos produzidos durante a lavratura das prisões em flagrante por tráfico de drogas pela PF, referentes a mais de mil inquéritos policiais selecionados, apresentaram um panorama sobre o tráfico de drogas no ano de 2021, revelando que as maiores apreensões de maconha se deram em Mato Grosso do Sul, predominantemente, que faz divisa com o Paraguai, país produtor. São Paulo vem logo depois na lista, sendo seguido pelos três estados do Sul. Já em relação à cocaína, destacam-se Mato Grosso, vizinho à Bolívia, país produtor da droga, além de Mato Grosso do Sul, São Paulo e dos três estados do Sul.
A presença dos representantes do Sul e Sudeste na lista se justifica, no que diz respeito a ambas as drogas, possivelmente pela concentração populacional na região. Especificamente em relação à cocaína, deve-se ao acesso a grandes portos e aeroportos, servindo de entreposto para o exterior.
Os dados também demostraram que a maioria dos transportadores era composta por homens, com idade entre 20 e 39 anos, declarados negros (pretos + pardos), com o nível médio de escolaridade (completo ou não), sem vício em entorpecentes e com renda per capita entre R$ 1,00 e R$ 1.000,00. Em relação à forma de transporte, houve preponderância do modal rodoviário, por meio de automóveis, ônibus e caminhões, havendo predominância de indivíduos do sexo masculino.
No que se refere aos “prêmios” que seriam recebidos pelas “mulas” no caso de sucesso na entrega, informação até então presente em poucos registros públicos, o valor mediano oferecido pelos traficantes aos transportadores foi de R$ 3.000 por empreitada, variando os valores de R$ 50, no caso de retirada de encomenda postal contendo maconha, a R$ 150.000, quando grande carga de cocaína era transportada por caminhão. Na média, o valor do “prêmio” pago por quilo de maconha e de cocaína girou em torno de R$ 300,00 e R$ 1.150,00, respectivamente. Quando a cocaína é destinada ao exterior, tal cifra pode aumentar em até cinco vezes, em razão do maior risco envolvido no deslocamento até o país de destino. Os perigos aos mulas crescem devido às várias etapas de fiscalização, além das rígidas penalidades impostas em alguns países para crimes desse tipo. Na Indonésia, convém lembrar que há até possibilidade de pena capital. Influi nesse cálculo também o maior valor pago pelo produto por parte dos compradores finais. Interessante notar, que, para todos os tipos de transportes semelhantes, as mulheres recebiam, em média, significativamente menos do que os homens, possivelmente em decorrência de mais um reflexo dos valores patriarcais disseminados nos mercados ilegais.
Observamos que vários presos concomitavam ganhos de atividades legítimas e ilegítimas, não mutuamente excludentes (EHRLICH, 1973). Notamos ainda que alguns indivíduos já possuíam registros criminais anteriores, sendo identificada reincidência policial (CAPDEVILA e PUIG, apud SAPORI et al, 2017) principalmente no crime de tráfico de drogas, inclusive no mesmo ano. Ou seja, mesmo após estarem respondendo a processo criminal ou até mesmo cumprido pena por condenação anterior, o crime ainda compensaria para aqueles indivíduos. Talvez isso possa ser explicado pela diminuição de oportunidades no mercado de trabalho legal em razão da estigmatização sofrida por ex-detentos, conforme proposto por EHRLICH (1973), o que lhes aumenta a utilidade esperada com a ação criminosa.
Outras questões também podem influenciar na decisão de se realizar uma ação criminal (HUEBNER, DEJONG et al, 2010), como violências e abusos sofridos na infância e na adolescência, a incapacidade correcional das instituições penais e a deficiência estrutural em relação a lotação, capacitação dos funcionários, oferta de atividades sociais, educacionais e de formação profissional. Há ainda as dificuldades de reintegração social e de retorno ao mercado de trabalho por conta do preconceito, e a falta de oportunidades laborais, que pode ter sido agravada pelo impacto da pandemia no mercado de trabalho, que afetou mormente trabalhadores informais, pessoas em vulnerabilidade social e desempregados, podendo levá-las a outros distúrbio sociais, como o abuso de drogas ou álcool, ou a retornarem ao convívio de criminosos e à prática de novas ações delituosas, principalmente nos três primeiros anos, tidos como o período de maior risco para a reincidência criminal (MASTRORILLI et al, 2015).
Portanto, depreende-se dos resultados que algumas das ações públicas que visem diminuir a reincidência criminal devem atuar principalmente de forma a aumentar a inclusão econômica e social dos indivíduos, seja com a capacitação profissional ou a reintegração de egressos do sistema penal à comunidade e ao mercado laboral.