Multiplas Vozes 09/11/2022

Mirando o Abismo: Populismo e Ação Policial

A violência policial no Brasil é sustentada e acobertada por setores importantes da sociedade civil e do sistema político, assim como de parte das corporações policiais

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS

Fernanda Bestetti de Vasconcellos

Socióloga, coordenadora do PPG em Segurança Cidadã da UFRGS

Nos últimos dias antes do segundo turno da eleição presidencial de 2022, percebendo que o plano de reeleição estava seriamente ameaçado, Jair Bolsonaro buscou no populismo penal seu penúltimo cartucho para tentar reverter a derrota anunciada por todas as pesquisas de opinião. Lançou então documento com 22 compromissos, voltado para os eleitores indecisos, no qual prometia, para quem quisesse acreditar, que, uma vez eleito, não iria alterar a composição do Supremo Tribunal Federal.

Mas o maior destaque estava nos primeiros cinco pontos, nos quais retomava algumas questões de forte apelo popular, e que não tinham andado durante seu mandato presidencial: a redução da maioridade penal para crimes hediondos, o fim das audiências de custódia, o endurecimento das penas e dos critérios para progressão de regime para crimes violentos, a criação do “Estatuto das Vítimas”, e a aprovação da “excludente de ilicitude” para respaldar os policiais no combate ao crime.

Interessa-nos aqui discutir especificamente os tópicos 2 (fim das audiências de custódia) e 5 (excludente de ilicitude para mortes por intervenção policial), que, somados à crítica à instalação de câmeras no fardamento dos policiais, sustentada por candidatos a governador alinhados ao bolsonarismo, constituem o núcleo duro da concepção de segurança pública do capitão: salvo-conduto aos policiais para agirem de forma violenta no combate ao crime, mesmo que contra a lei.

Poucos dias antes, um canal de streaming lançava a série Rota 66, convertendo para a linguagem televisiva a famosa obra, fruto de trabalho jornalístico do repórter Caco Barcellos (o mesmo que na véspera da eleição conseguiu flagrar o assédio eleitoral de representantes da prefeitura de Coronel Sapucaia, na fronteira do Brasil com o Paraguai, sobre beneficiários do Auxílio Brasil, em favor da candidatura de Bolsonaro). Caco apurou, no período de mais de uma década, entre meados dos anos 70 e meados dos anos 80, centenas de mortes praticadas por policiais integrantes da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) no estado de São Paulo.

O que a investigação demonstrou foi que eram mortes sem resistência, de cidadãos em sua maioria negros, moradores de periferia, muitos sem passagem pela polícia, desarmados, com tiros pelas costas, já rendidos. Ou seja, execuções que não eram investigadas, muitos menos esclarecidas. Os policiais apresentavam sua versão, na forma de “autos de resistência”, com aval do sistema de saúde, que não questionava, da polícia civil, que não investigava, e da mídia, na qual predominavam os jornalistas “amigos” da polícia, dispostos a ganhar notoriedade com a narrativa da luta do bem contra o mal.

Tanto o jornalismo investigativo quanto a pesquisa sociológica e antropológica foram fundamentais, nas últimas décadas, para jogar luz sobre a ação de grupos de policiais, tanto em São Paulo quanto em outros estados, atuando como verdadeiros esquadrões da morte, executando pessoas sem amparo legal. Grupos protegidos pela impunidade e pela legitimidade social obtida em um contexto em que o medo e a insegurança pública dão margem a toda sorte de respostas informais ao delito, desde os linchamentos e os matadores de aluguel até as milícias urbanas e os policiais justiceiros.

Em que pese esse trabalho de dar publicidade ao lado B da ação policial tenha produzido impactos importantes, rompendo com a lei do silêncio que até então imperava, fato é que a situação tem se agravado, como dá conta o número de mortes em confronto com a polícia, estabilizado nos últimos 5 anos em mais de 6 mil casos ao ano no país.

A busca de dividendos eleitorais sobre a insegurança pública, com a tentativa de “legalizar” a violência policial, desarticulando as iniciativas promissoras neste âmbito, como as audiências de custódia e as câmeras na farda dos policiais, apenas denotam o fato de que a violência policial no Brasil é sustentada e acobertada por setores importantes da sociedade civil e do sistema político, assim como de parte das corporações policiais.

Derrotado na eleição, Bolsonaro deve encaminhar seus compromissos de campanha às instâncias competentes, se é que vai lembrar deles nos próximos meses, ocupado com as consequências da perda da imunidade e do foro privilegiado. De qualquer forma, são propostas com grande apelo popular, e a reversão da adesão de amplos setores da população a soluções não só antidemocráticas, mas também antimodernas de resposta ao delito, exige colocar o tema da segurança pública no centro do debate e das ações dos próximos governos federal e estaduais.

A priorização de políticas de segurança pública que incorporem o binômio da repressão qualificada e da prevenção situacional, com um amplo pacto federativo que viabilize a reforma das estruturas policiais, garantindo maior profissionalismo e distanciamento de interesses partidários, mecanismos efetivos de controle externo e revisão de atribuições, assim como as necessárias autonomia e independência da investigação criminal, a partir de critérios republicanos de prioridade e métodos científicos de coleta de provas, não podem mais ser adiados. Já miramos para o abismo e o que nele nos espera. Que possamos dele nos afastar.

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